31 março 2005

Toda a influência é imoral

Toda a influência é imoral, imoral sob o ponto de vista científico.
- Porquê?
- Porque exercer a nossa influência sobre alguém é darmos a própria alma. Esse alguém deixa de pensar com os pensamentos que lhe são inerentes, ou de se inflamar com as suas próprias paixões. As suas virtudes não lhe são reais. Os seus pecados - se é que os pecados existem - são emprestados. Tal pessoa passa a ser o eco da música de outrem, o actor de um papel que não foi escrito para si. O objectivo da vida é o nosso desenvolvimento pessoal.

Compreender perfeitamente a nossa natureza - é para isso que estamos cá neste mundo. Hoje as pessoas temem-se a si próprias.
Esqueceram o mais nobre de todos os deveres: o dever que cada um tem para consigo mesmo.
É certo que não deixam de ser caritativos. Dão de comer aos que têm fome e vestem os pobres. Mas as suas almas andam famintas e nuas. A coragem desapareceu da nossa raça. Ou talvez nunca a tivéssemos tido. O temor da sociedade, que é a base da moral, o temor de Deus, que é o segredo da religião - eis as duas coisas que nos governam. E, contudo...

- Volte a cabeça um pouco mais para a direita, Dorian, seja um rapaz bem comportado - disse o pintor, absorvido pelo seu trabalho e apercebendo-se apenas de que surgira no rosto do jovem uma expressão que nunca lhe vira antes.

- E, contudo - continuou Lord Henry na sua voz grave e musical, fazendo um gracioso gesto com a mão, tão
característico, mesmo já nos tempos de Eton - se um homem devesse viver a sua vida em toda a plenitude, dar forma a todos os sentimentos, expressão a todos os pensamentos, realidade a todos os sonhos, creio que o mundo ganharia um novo impulso de alegria que nos levaria a esquecer todos os males do medievalismo e a regressar ao ideal helénico. Talvez mesmo a algo mais refinado e mais rico que o ideal helénico. Mas o mais ousado de todos nós teme-se a si mesmo. O selvagem mutilado que nós somos sobrevive tragicamente na auto-rejeição que frustra as nossas vidas.


O RETRATO DE DORIAN GRAY
Oscar Wilde
1891

30 março 2005

Tocou-me para sempre

– Oiça – disse Granger tomando-lhe o braço e afastando com a mão livre os arbustos que se atravessavam no caminho. - O meu avô morreu quando eu era pequeno. Era escultor. Era um homem bom, cheio de ternura pelo mundo inteiro. Fez muito para acabar com os bairros miseráveis da nossa cidade. E fabricava-nos brinquedos. Durante toda a sua vida fez milhões de coisas. As suas mãos estavam sempre ocupadas. E, quando morreu, notei subitamente que não chorava por causa dele, mas por causa de tudo o que ele fazia. Chorei porque ele nunca mais as tornaria a fazer; nunca mais esculpiria um pedaço de madeira, nunca mais nos ensinaria a criar pombos no jardim, ou tocaria violino, ou nos contaria histórias. Fazia parte de nós e, quando morreu, todas essas coisas morreram com ele e não havia ninguém para o substituir. Era uma pessoa notável, um homem de valor. Nunca pude esquecer a sua morte. Frequentemente penso em todas as maravilhosas esculturas que não chegaram a existir porque ele também já não existia. Quantas belas palavras não foram ditas, quantos pombos as suas mãos não tocaram? Ele modelava o mundo. Ele mudara o mundo. O dia em que morreu foi o fim de milhares de acções generosas.

– Todos devemos deixar qualquer coisa atrás de nós, ao morrermos, dizia o meu avô. Um filho, um livro, um quadro, uma casa, uma parede ou um par de sapatos. Ou ainda um jardim plantado de flores. Qualquer coisa que a mão tocou e para onde irá a alma no instante da morte. E quando as pessoas olharem essa árvore ou essa flor que plantámos, nós estamos lá, sob os seus olhos. Pouco importa o que se faça, dizia ele, desde que ao tocar essa coisa, ela se transforme, do que era, à nossa semelhança. A diferença entre o homem que apara a relva e o verdadeiro jardineiro reside na maneira de tocar as coisas, dizia ele. O homem que corta a relva, desaparece; o jardineiro ficará presente toda a sua vida. Compreende? – Granger voltou-se para Montag.

– O meu avô morreu há muito tempo, mas se erguer a minha calote craniana, verá a marca profunda dos seus polegares. Tocou-me para sempre. Como lhe disse ele era escultor. " Odeio o status quo romano!", dizia-me. "Conserva sempre o espanto nos olhos. Vive como se fosses morrer dentro de dez segundos. Olha o mundo. Ele é mil vezes mais extraordinário que todos os sonhos que se podem fabricar em série nas fábricas. Nem propaganda, nem garantias, nem segurança, nunca um animal com esse nome existiu. E, se tivesse existido, seria parente desse preguiçoso que fica pendurado num ramo todo o dia, de cabeça para baixo, e consagra toda a sua vida a dormir. Ao diabo, sacode-me essa árvore e faz com que o preguiçoso bata com o rabo no chão!"



FAHRENHEIT 451
Ray Bradbury

29 março 2005

A imensidão dentro de nós

- Lá fora - disse-lhe eu suavemente - no jardim.

Ele olhou para Anouk, ainda adormecida no sofá e concordou. Junto encaminhamo-nos lá para fora sob o céu púrpura e estrelado.

O jardim estava quente do brilho dos fogareiros. as seringueiras e os lilases da pérgula de Narcisse cobriam-nos como um manto perfumado.
Deitamo-nos na relva como crianças.

Não fizemos promessas, não dissemos palavras de amor, embora ele fosse delicado, quase desapaixonado, deslizando com uma lenta doçura pelo meu corpo, lambendo-me a pele com a língua excitada. Sobre a sua cabeça o céu era negro-púrpura como os seus olhos e via-se a constelação da via láctea como uma estrada pelo mundo fora.

Eu sabia que esta seria a única vez entre nós e senti apenas uma ténue melancolia.

Uma crescente sensação de plenitude inundou-me, sobrepondo-se à minha solidão, até à minha tristeza por Armande.

Mais tarde haveria tempo para o luto. Para já, espanto apenas: eu, nua, deitada na relva, o homem silencioso ao meu lado, a imensidão sobre nós e a imensidão dentro de nós.

Ficamos deitados durante muito tempo, eu e Roux, até o nosso suor esfriar e pequenos insectos nos percorrerem os corpos e cheirarmos a alfazema e a tomilho do canteiro aos nossos pés, quando, ao darmos as mãos, observamos a rotação insuportavelmente lenta do céu...

O vento soprava agora dentro de mim, arrastando-me com o seu implacável imperativo. Mesmo no centro, um pequenino espaço ainda milagrosamente sereno, e a sensação quase familiar de algo novo...

Também isto é uma espécie de magia, que a minha mãe nunca compreendeu, e, contudo estou mais certa desta...desta coisa nova, milagrosa dentro de mim...do que de qualquer outra coisa que tenha feito antes. Compreendo por fim porque me saíram os amantes naquela noite.

Guardando ciosamente este saber, fechei os olhos e tentei sonhar com ela, tal como fiz naqueles meses até Anouk nascer, uma pequenina estranha com faces rosadas e olhos pretos vivos.
Quando acordei, Roux fora-se embora e o vento voltara a mudar.


CHOCOLATE
Joanne Harris

24 março 2005

Viajar?

Viajar? Para viajar basta existir.

Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.

Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.

"Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo".

Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo.

É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para que viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.



LIVRO DO DESASSOSSEGO
Fernando Pessoa

23 março 2005

A promessa

Os países distantes são tão maravilhosos – diziam as andorinhas.
– Contem, contem – pediu a Oriana.
– O rei do Sião tem um palácio com um telhado de oiro e na China há torres de porcelana – disse uma andorinha.
– Na Oceânia há ilhas de coral cobertas de relva e palmeiras. E nessas ilhas as pessoas vestem-se com flores e são todas bonitas, boas e felizes – disse outra andorinha.
– Os cangurus têm uma algibeira para guardar os filhos e o rei do Tibete sabe ler o pensamento de todos os homens – disse outra andorinha.
– No alto das montanhas dos Andes há cidades abandonadas, onde só vivem águias e serpentes – disse outra andorinha.
– Que maravilha! Contem tudo – pediu Oriana.
– Não se pode contar tudo – responderam as andorinhas.
– As maravilhas do mundo são tantas, tantas! Mas vem connosco, Oriana. Quando vier o Outono nós partimos. Tu também tens duas asas. Vem connosco.

Mas Oriana olhou o vasto céu redondo e transparente, suspirou e respondeu:

– Não posso ir. Os homens, os animais e as plantas da floresta precisam de mim.
– Mas tu tens duas asas, Oriana. Podes voar por cima dos oceanos e das montanhas. Podes ir para o outro lado do Mundo. Há sempre mais e mais espaço. Imagina como seria bom se viesses. Podias voar muito alto, por cima das nuvens, ou podias voar rente ao mar azul, mergulhando a ponta dos teus pés na água fria das ondas. E podias voar por cima das florestas virgens, e respirar o perfume das flores e dos frutos desconhecidos. Vias as cidades, os montes, os rios, os desertos e os oásis. No meio do grande oceano há ilhas pequeninas com praias de areia branca e fina. Ali, nas noites de luar, tudo fica azul, parado e prateado. Imagina estas coisas, Oriana.

Mas Oriana, olhando o alto céu e as nuvens vagabundas, suspirou e disse:
– Imagino o que seria da velha sem mim quando ela acordasse numa manhã fria de Inverno e não encontrasse o pão nem o leite.
– Vem connosco, Oriana – tornaram a pedir as andorinhas.
– Eu prometi tomar conta da floresta – respondeu a fada – e uma promessa é uma coisa muito importante.
Então as andorinhas fitaram-na com olhos pretos duros e brilhantes, e com um ar severo disseram:
– Oriana, não mereces ter asas. Tu não amas o espaço e desprezas a liberdade.


A FADA ORIANA
Sophia de Mello Breyner Andresen


22 março 2005

Eternamente...

E arranquei a página da agenda com o teu nome e o teu número de telefone. Veio a seguir Abril e depois o Verão. Vi nascer a flor da tremocilha e a das bungavílias adormecidas, vi rebentar o azul dos jaracandás em Junho, vi noites de lua cheia em que todos os animais nocturnos se chamavam rãs, corujas e grilos, e um espesso calor sobre a devassidão da cidade. E já nada disto, juro, era teu.

E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter.

Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhamos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silencio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogamos o sentido. Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem principio nem fim, na verdade dos sentidos nunca traídos.

E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro, com cheiro a algas e a iodo. E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre.


NÃO TE DEIXAREI MORRER, DAVID CROCKET
Miguel Sousa Tavares

21 março 2005

Saudade

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade: aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos: não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido...


ÚLTIMOS SONETOS
Pablo Neruda

20 março 2005

Um olhar de velho triste

- Vem, quero mostrar-te uma coisa - disse Pedro Tercero. Levou-a pela mão. Caminharam, saboreando aquele amanhecer do mundo, arrastando os pés no barro, apanhando talos tenros para lhes sugar a seiva, olhando-se e sorrindo, sem falar, até que chegaran a um prado afastado. O Sol aparecia por cima do vulcão, mas o dia ainda não acabara de se instalar e a terra bocejava. Pedro disse-lhe para se deitar no chão e guardar silêncio. Rastejaram aproximando-se dos matos , deram uma pequena volta e então Blanca viu-a. Era uma formosa égua baia, dando à luz sozinha na colina.


Os meninos imóveis, fazendo por que não se ouvisse nem a sua respiração, viram-na arquear e esforçar-se até que apareceu a cabeça do potrozinho e, em seguida, depois de bastante tempo, o resto do corpo. O animalzinho caiu no chão e a mãe começou a lambê-lo, deixando-o limpo e brilhante como madeira encerada, animando-o com o focinho para que tentasse erguer-se. O potrozinho tentou por-se em pé, mas dobraram-se-lhe as frágeis pernas de recém-nascido e ficou deitado, olhando a mãe com ar desvalido, enquanto ela relinchava saudando o Sol da manhã. Blanca sentiu a felicidade estalando no peito e brotarem-lhe as lágrimas nos olhos.

- Quando for grande, vou-me casar contigo e vamos viver aqui, em Las Tres Marias - disse num sussurro. Pedro ficou a olhá-la com expressão de velho triste e negou com a cabeça. Era ainda muito mais pequeno que ela, mas já conhecia o seu lugar no mundo. Também sabia que amaria aquela menina durante toda a sua existência, que esse amanhecer perduraria na sua recordação e que seria o último que veria no momento de morrer.

A CASA DOS ESPIRITOS
Isabel Allende
1987

19 março 2005

Para o meu pai do coração!

Quando acho que o papão me vem buscar, ou que os monstros vieram dormir para debaixo da minha cama,
és tu que me aconchegas nos braços e os fazes desaparecer.

É no teu colo que eu fico sossegadinha a ver os bichos na televisão.
E que consigo chegar mais alto quando quero tocar nas estrelas.

És tu quem me aconchega e conta histórias antes de adormecer,
E que segura na minha mão para o dói-dói ir embora.

Contigo partilho as bolachas com leite antes de deitar,

os chocolates que comemos às escondidas da mamã
e as conversas secretas que temos só nós dois.

Brincamos aos saltos,

inventamos letras novas para as minhas canções,
andamos de bicicleta,
gritamos para espantar os monstros (e acordar os vizinhos)
e fazemos corridas ao fim do dia à beira-mar.

Por seres esta pessoa tão importante na minha vida, neste dia especial, quero dizer-te que tu és o PAI que qualquer filha gostaria de ter, e eu estou muito contente por o teu coração me ter escolhido a mim.

Um xi-coração do tamanho do mundo!

MARTA

Isabel
19 Março 2005

este texto é dedicado ao meu marido, meu companheiro para sempre e "pai do coração" da minha filha Marta


18 março 2005

As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que matem (e matam)
a cada instante o amor.


POESIAS
Carlos Drummond de Andrade

17 março 2005

Desde o começo do mundo

A noite estava agradável. Na luz pura do luar esfumava-se a paisagem, perdiam-se os perfis dos montes e dos grandes eucaliptos envoltos na sombra...

Deitaram-se a um canto, sobre a erva agreste, fitando o céu estrelado em cuja abóboda infinita, brilhava uma lua de leite.

Irene deixou cair a cabeça sobre o ombro de Francisco e chorou toda a sua angústia. Ele rodeou-a com um braço e assim ficaram muito tempo, talvez horas, buscando na quietude e no silêncio algum alívio depois do que tinham descoberto e forças para o que teriam de suportar.

A pouco e pouco foi-se afrouxando o nó que oprimia o espírito de Francisco. Percebeu a beleza do céu, a suavidade da terra, o cheiro intenso do campo, o contacto de Irene contra o seu corpo…

Lembrou-se do dia em que a tinha conhecido, quando o seu sorriso o deslumbrou. Amava-a desde então…

O ar prendeu-se-lhe no peito e o seu coração lançou-se num frenético golpe. Irene era sua porque assim estava escrito desde o começo do mundo.

DE AMOR E DE SOMBRA
Isabel Allende
1984

16 março 2005

Loucura?

Mas afinal o que vem a ser a loucura?... Um enigma...
Por isso mesmo é que às pessoas enigmáticas e incompreensíveis se dá o nome de loucos...
Que a loucura, no fundo é como tantas outras, uma questão de maioria. A vida é uma convenção: isto é vermelho, aquilo é branco unicamente porque se determinou chamar à cor disto vermelho e à cor daquilo branco. A maior parte dos homens adoptou um sistema determinado de convenções: é a gente de juizo... Pelo contrário, um número reduzido de individuos vê os objectos com outros olhos, chama-lhes outros nomes, pensa de maneira diferente, encara a vida de modo diverso. Como estão em minoria... são doidos...
Se um dia porém a sorte favorecesse os loucos, se o seu número fosse superior e o génio da sua loucura idêntico, eles é que passariam a ser os ajuizados: «Na terra de cegos quem tem um olhos é rei» diz o adágio: na terra de doidos quem têm juizo é doido, concluo eu!

PROSAS
Mário de Sá-Carneiro

Então fui feliz

Quando soube ao fim do dia
que o meu nome fora aplaudido no Capitólio,
mesmo assim nessa noite não fui feliz,
E quando me embriaguei ou quando se realizaram os meus planos,
nem assim fui feliz.

Porém, no dia em que me levantei cedo, de perfeita saúde, repousado, cantando e aspirando o ar fresco de Outono,
Quando a Oeste, vi a lua cheia empalidecer e perder-se na luz da manhã.

Quando, só, errei pela praia e nú mergulhei no mar, e rindo ao sentir as águas frias, vi o sol subir. E quando pensei que o meu querido amigo, meu amante, já vinha a caminho, então fui feliz.

Então era mais leve o ar que respirava, melhor o que comia e esse belo dia acabou bem.
E o dia seguinte chegou com a mesma alegria e depois no outro ao entardecer veio o meu amigo.
E nessa noite, quando tudo estava em silêncio, ouvia as águas invadindo lentamente a praia,
Ouvi o murmúrio das ondas e da areia, como se quizesse felicitar-me,

Porque aquele que mais amo dormia ao meu lado, sob a mesma manta na noite fresca.
Na quietude daquela lua de Outono, o seu rosto inclinava-se para mim,
E o seu braço repousava levemente sobre o meu peito - nessa noite FUI FELIZ.

CÁLAMO
Walt Whitman
1860

Não existem lojas de amigos

E foi então que apareceu a raposa:
- Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu polidamente o principezinho que se voltou mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? Perguntou o principezinho. Tu és bem bonita.
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, propôs o príncipe, estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaste ainda.
- Ah! Desculpa, disse o principezinho. Após uma reflexão, acrescentou:
- O que quer dizer cativar?
- Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras? - Procuro amigos, disse. Que quer dizer cativar?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa criar laços...
- Criar laços?
- Exactamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Mas, se tu me cativares, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim o único no mundo. E eu serei para ti a única no mundo...
E a raposa voltou a sua ideia:
- A minha vida é monótona. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativares, a minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei o barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros fazem-me entrar debaixo da terra. O teu chamar-me-á para fora como música. E depois, olha! Vês, lá longe, o campo de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelo cor de ouro. E então serás maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento do trigo... A raposa então calou-se e avaliou muito tempo o príncipe:
- Por favor, cativa-me! Disse ela.
- Bem quisera, disse o príncipe, mas eu não tenho tempo. Tenho amigos a descobrir e mundos a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres uma amiga, cativa-me! Os homens esqueceram a verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativas"

O PEQUENO PRINCIPE
Antoine de Saint-Exupéry

DÁNAE

Volta pela marginal, ao principio da tarde, com chuva dourada da primavera: céu cinzento, mar verde-escuro, viscoso, dorso de imenso sáurio arfando.
Chuva começa a bater na capota do carro em gotas grossas. Algumas escorregam e deslizam já pelo para-brisas.
Uma povoação lá adiante, mas se vê agora sob a cortina de água.
Um paquete no mar, sol electromagnético irisa os nimbos escuros, um feixe dos seus raios quebra-se na água junto à costa.
Estrada transformada em passadeira aquática. Os carros deslizam cautelosamente, farois acesos. O dela atravessa um aluvião de areia, arrastado pela chuva.
Arbustos por aqui e por alí, vergados, agitados. Alguns cactos de flores vermelhas perfuram a névoa densa.
Ensandecida, nova bátega se estilhaça sobre o asfalto, que fumega de água.
Abre a porta que deita para o jardim. Descalça-se. Despoja-se de roupas.
Nua, vai pelos carreiros, feliz, agita ramos e folhagens. Alcança o virbuno em flor, abraça-se ao tronco e sacode-o com todas as forças, para que o corpo se lhe encharque também nesta água dourada de primavera.

AS VELHAS SENHORAS E OUTROS CONTOS
Natália Nunes
1965

15 março 2005

Cada momento de busca...

O rapaz continuou a escutar o seu coração, enquanto caminhava pelo deserto. Passou a conhecer as suas artimanhas e os seus truques, e passou a aceitá-lo como era. Então o rapaz deixou de ter medo, e deixou de ter vontade de voltar, porque certa tarde o seu coração disse-lhe que estava contente. «Mesmo que eu reclame um pouco - dizia o seu coração - é porque sou um coração de homem, e os corações dos homens são assim.

Têm medo de realizar os seus maiores sonhos, porque acham que não merecem alcançá-los, ou poder consegui-los. Nós, os corações, morremos de medo só de pensar em amores que partiram para sempre, em momentos que poderiam ter sido bons e que não o foram, em tesouros que poderia ter sido descobertos e ficaram para sempre escondidos na areia. Porque quando isso acontece acabamos sofrendo muito.»

- O meu coração tem medo de sofrer - disse o rapaz para o Alquimista, uma noite em que olhava o céu sem lua.
- Diz-lhe que o medo de sofrer é pior do que o próprio sofrimento. E que nenhum coração jamais sofreu quando foi em busca dos seus sonhos, porque cada momento de busca é um momento de encontro com Deus e com a Eternidade.
«Cada momento de busca é um momento de encontro», disse o rapaz ao seu coração.»

O ALQUIMISTA
Paulo Coelho
1988

14 março 2005

A escola. A flor. A flor. A escola...

Tudo ia muito bem quando Godofredo entrou na minha aula. Pediu licença e foi falar com D. Cecília Paim. Só sei que ele apontou a flor no copo. Depois saiu. Ela olhou para mim com tristeza.
Quando terminou a aula, me chamou.
- Quero falar uma coisa com você, Zézé. Espere um pouco.
Ficou arrumando a bolsa que não acabava mais. Se via que não estava com vontade nenhuma de me falar e procurava a coragem entre as coisas. Afinal se decidiu.
- Godofredo me contou uma coisa muito feia de você, Zézé. É verdade?
Balancei a cabeça afirmativamente.
- Da flor? É, sim, senhora.
- Como é que você faz?
- Levanto mais cedo e passo no jardim da casa do Sérginho. Quando o portão está só encostado, eu entro depressa e roubo uma flor. Mas lá tem tanta que nem faz falta.
- Sim. Mas isso não é direito. Você não deve fazer mais isso. Isso não é um roubo, mas já é um furtinho.
- Não é não, D.Cecília. O mundo não é de Deus? Então as flores são de Deus também...
Ela ficou espantada com a minha lógica.
- Só assim que eu podia, professora. Lá em casa não tem jardim. Flor custa dinheiro... E eu não queria que a mesa da senhora ficasse sempre de copo vazio.
Ela tirou o o lenço da bolsa e passou disfarçadamente nos olhos.
- Eu não queria fazer a senhora chorar. Eu prometo que não roubo mais flores e vou ser cada vez mais um aluno aplicado.
Pegou as minhas mãos entre as dela.
- Você vai prometer uma coisa, porque você tem um coração maravilhoso, Zézé.
- Eu prometo, mas não quero enganar a senhora. Eu não tenho um coração maravilhoso. A senhora diz isso porque não me conhece em casa.
- Não tem importância. Pra mim você tem. De agora em diante não quero que você me traga mais flores. Só se você ganhar alguma. Você promete?
- Prometo, sim senhora. E o copo? Vai ficar sempre vazio?
- Nunca esse copo vai ficar vazio. Quando eu olhar para ele vou enxergar a flor mais linda do mundo. E vou pensar: quem me deu essa flor foi o meu melhor aluno. Está bem?
Agora ela ria. Soltou minhas mãos e falou com doçura.
- Agora pode ir, coração de ouro...

O MEU PÉ DE LARANJA LIMA
José Mauro de Vasconcelos
1968

Cântigo Negro

«Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «vem por aqui»!
Eu olho-os com os olhos lassos,
(Há nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

Não, não vou por aí!
Só vou por onde me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: «vem por aqui»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Ah que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: «vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda a mais que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!



POEMAS DE DEUS E DO DIABO
José Régio
1901-1969

11 março 2005

Lindo amor, que me matais...

Porque razão desdenhais
Deste amor que vos ofereço?
Porque é que me desprezais,
Quando eu por vós, enlouqueço?

Lindo amor que me matais!...

Dou-vos, alma e coração,
Por vós da vida desisto...
Desisto sim, mas em vão:
Vós pagais-me tudo isto
Com tão grande ingratidão!...

POESIAS
Mário de Sá-Carneiro
9 Janeiro 1909

Livros da minha vida...

Cedo descobri a magia que um livro pode guardar e vários são aqueles que ao longo dos anos me têm acompanhado.

O Principezinho e O Alquimista
O Meu Pé de Laranja Lima e A Cabana do Pai Tomás
A Menina do Mar e O Cavaleiro da Dinamarca
Capitães da Areia numa Praia Roubada
Cem Anos de Solidão na Casa dos Espíritos

Chocolate e Vinho Mágico
O Deus das Pequenas Coisas e O Amante
Todos os Nomes num Ensaio sobre a Cegueira
Retrato a Sépia pelo Primo Basílio
Cem Sonetos de Amor num Diário de um Mago

Palavras mágicas que vou descobrindo,
Cores e sons com que vou colorindo
Um Livro em Branco
Que trago por companhia.

Isabel Dias
Out. 2004