24 janeiro 2006

Depois lembro-me outra vez

Vivia sozinho. Transformava velhos kilts em sobrecasacas e sentava-se a ler jornais ingleses.
Sim, é uma ideia, uma imagem que me assalta bruscamente e não me assusta porque já me habituei a estas coisas. Mas basta.
Uma vez tive nas minhas mãos um livro de Beckett. Numa página dizia assim: «sentado no mesmo sítio, mãos nos joelhos, como um grão-duque numa gaiola. As lágrimas correm-me pelas faces...»
Mas isto, esta outra imagem embora me represente inteiramente não é para aqui chamada.
Sou um grão-duque de sangue impuro.
Vestido com dois sobretudos porque tenho frio e ando sempre metido em várias camadas de roupa, e que ninguém, ninguém ouse nunca mais atormentar-me. Soltaria gritos de grão-duque! São gritos terríveis, finais!
Posso imaginar-me a abrir uma enorme boca sem dentes. Mas não sairia nenhum som, contentes? Vai já acabar, esta piada dos gritos. Pronto, acabou. Assim como a constelação do cisne. Não volto a falar disso tão depressa. Contentes? É melhor assim? Calculo que seja.
Então. Posso imaginar-me a abrir uma enorme boca sem dentes da qual não sairia nenhum som. Seria uma simples representação de horror autocomplacente, mais uma vez, acho eu. E teria momentaneamente a vantagem de me satisfazer, de me acalmar. Satisfazer a minha voracidade, e pode chamar-se voracidade ao sofrimento? Não sei. Uma inquietude violenta.
Acontece-me ir até ao aeroporto. Acho que já disse. Fico ali a ver os aviões que levantam para o Sal.
Como partir, como partir? Como voltar a casa dos actos fundadores? Quando sair do aeroporto reparo naquela gente toda à espera, no check-in. Será que esperam como eu, ou pelo menos será que esperam qualquer coisa no mesmo género? Acho que não.

Queria a quietude.


Ali na drogaria voltei a olhar para trás e na escura pureza do céu cruzavam-se plásticos vazios levados pelo vento. Rodopiavam alto, alto. Poisavam.
Não. A minha tristeza. Era vermelha e negra.
Não, também não faz sentido. Estou a dizer de mais ou de menos, mas a minha tristeza. Parecia um bicho vivo que se agarrava a mim a certas horas. As horas em que eu decidia que te amava? E depois, é verdade. Amava. Não, não a todas as horas. Mas a certas horas, sim. Um cavalo galopava para mim e estourava-me o coração. E eu sofria.
Vomitava, tinha vontade de vomitar porque reconhecia o mal.
Porque sabia que tinha de viver com ele numa trivialidade indecente, como toda a gente. Mais: que era isso que determinava a minha condição: a de um homem que ainda não morreu e tudo isto é simples, tão simples. Sou um homem que ainda não morreu.
E esta, é uma certeza de grão-duque, sim senhor.
Às vezes tudo toma a aparência daquilo que seria ainda uma outra coisa e age como uma falta, uma ausência, uma ofensa profunda, um romper - e no entanto não sei, não sei. Não sei definir, vigiar com firmeza. Manter a distância necessária com os meus próprios medos. Ser apenas um homem que ainda não morreu, não é verdade? Requer meios. Meios mentais, mas eu.
Fecho os olhos. Umas mãos pequenas e brancas passam por mim. Gordas e ardilosas pequenas pombas. São as mãos da minha avó paterna. Voltam a passar-me diante dos olhos mas esqueço logo. Esqueço tudo. Mas depois lembro-me outra vez.



VERMELHO
Mafalda Ivo Cruz