19 janeiro 2006

A inevitável enxurrada do amor













Deitada na areia, lutando sem sucesso contra a imagem de Roberto nessa noite de pousada, em que lhe dissera, acolhendo misticamente a respiração dela na boca :" Sou tão feliz consigo, Aldita!", procurava no mesmo passo esquecer a carta formal que recebera dele, uma carta comercial em papel timbrado, cujo sentido estrito lhe escapava. Alda julgava compreender, no entanto, o significado geral do acontecimento, embora se mantivesse ainda céptica sobre o significado que ele teria para si mesma. Agora padecia apenas de choque e humilhação, mas quem sabe no que tudo isso se poderia transformar depois das insistentes explicações do amante? "Temos o grato prazer de informar Vossa Excelência ", dizia o papel da Robimota Import/Export , " de que foi depositado na sua conta o cheque no valor total de cinquenta milhões de escudos. Muito penhorados pela gentileza e espírito humanitário de Vossa Excelência, colocamos à disposição dez por cento deste valor, símbolo da nossa gratidão e honorário de Seus serviços". E assinavam: Roberto Imperioso e Arnaldo Mota, e Alda não pôde deixar de se enternecer com as rubricas deles, tão semelhantes e desajeitadas que eram obviamente feitas pela mesma pessoa, uma pessoa que não se esforçava muito por esconder o embuste.

Alda subiu ao pontão para se dar ao meticuloso trabalho. Desde menina que se livrava, naquele mesmo banco, de todos os grãos de areia, antes de começar o difícil caminho para casa. Tirava do saco o colar e o relógio, prendia o cabelo, vaporizava a cara com água mineral. Estava nisto quando reparou que o velho ao lado de quem se sentara por distracção, se lamentava baixinho e chorava. Alda manteve-se entretida a limpar a areia dos pés, fingiu que não ouvia, mas o velho chegou-se mais a ela, determinado a contar-lhe.

Chorava por causa da Menina, a cadela que morrera atropelada. Tirou do bolso interior do casaco uma polaroid que mostrava um retriever dourado, meigo e reinadio, sentado num sofá de orelhas, o focinho apoiado no braço de couro escuro, olhando ternamente o mesmo velho que, descontraído se sentava no chão aos seus pés. Alda não teve pena, não soube sequer o que dizer. Despediu-se, levantou-se com o trabalho infinito de se escovar ainda inacabado. Ia procurar um banco com menos sofrimento. Sentados nas pedras do molhe, banhistas de todos os feitios olhavam para o mar. E mais à frente viu, nos degraus da escada de pedra, um casal de obesos, ela de cabeça encostada na montanha do ombro dele, ele de braço passado sobre a montanha do ombro dela, contemplando o seu crepúsculo. No carro, finalizando os seus arranjos, expulsando o último grão de areia renitente, ainda viu um par de jovens namorados a brincar em contraluz. Primeiro foi a menina a correr atrás dele, para lhe dar uma palmada forte na cabeça, depois o púbere lançou-se na corrida atrás dela, para a manietar e lhe dar um beijo no pescoço, a que ela se esquivava, correndo logo atrás dele para lhe bater mais uma vez e se deixar agarrar. Mas num instante, se liberta a ninfa, inesperadamente levanta os braços e dança, vulto escuro, esguio, cabelos compridos, e Alda repara que o ritmo dela é exactamente o que ela ouve tocar no rádio do seu carro. Sorrindo , a chave na ignição, imersa de novo, levada levada sim, flui na inevitável enxurrada do amor.

IMPÉRIO DO AMOR
Luísa Costa Gomes