05 janeiro 2006

Há de tudo neste mundo...

O elevador ainda não estava bem cheio quando ela entrou, houve logo quem lhe arranjasse lugar. Levava uma criancinha ao colo muito limpa e de moleirinha ao léu. Com o pelinho ainda muito tenro e ralo.
A mulher falava por falar sem ninguém lhe puxar pela língua; estava para contar a sua vida, quem quisesse que a ouvisse.
À sua frente ia um coxo elegante, outro... que desviava os olhos dela; à sua direita um homem comum e à sua esquerda uma mulher sem categoria, chupada e triste, destas que fazem o tirocínio dos hospitais. Ia muito mais gente, que não importa descrever. Toda aquela gente que já tinha atirado com as ideias de elegância às malvas ou que nunca as tinha tido se sentia distraído com a mulher. Não era um espectáculo de todos os dias. Robusta, tostada, feia e boçal, vinha de Monsanto a pé. E com o filho nos braços. Dizia que não sabia nada disto cá de Lisboa, que primeiro a tinham mandado para um elevador e depois a tinham mandado para outro...
O vizinho da direita pergunta-lhe então que é que pretendia, se era ir para a Misericórdia se para o Instituto.
- Para o tribunal, para o tribunal! responde logo ela.
- Para o Torel?
- Isso, isso, para a polícia! E com todo o desembaraço levanta um joelho para sentar a criança e deita abaixo a roupa de um ombro cheio de nódoas negras.
- E bateu-me mais aqui! (numa anca). E na cabeça e por toda a banda! Se não me tiram a criança dos braços ele matava-a.
- É o pai! Mas há-de perfilhá-lo. (Palavra aprendida na gíria dos tribunais). E pagar-lhe o sustento!
- Se ele puder... dizia-lhe o vizinho da direita, entendido naturalmente.
- Não, que não pode! Ganha doze escudos por dia. Partiu-me um pau no lombo e não ia ainda buscar outros? Se ele já matou a própia mãe à pancada!
- Que tempo tem? pergunta-lhe um dos passageiros indicando a criança.
- Três mesinhos, é um menino.
E tornava: - mas ele já está na cadeia, há quatro dias que o meteram lá!
Já todos se iam cansando ou envergonhando de ouvir a mulher. Diz-lhe ainda uma criatura da ponta: - há de tudo neste mundo...
- Olha um cigarrinho tão bom! brada de súbito a queixosa olhando para baixo de um banco.
Nisto pára o elevador. Todos se desinteressam dela. Mas a pé e perna, a mulher resoluta pergunta o seu caminho e segue-o.
Havia dias também em que umas caras gastas pareciam voltar para baixo aborrecidas da vida. A morgue, a prisão e o hospital justificavam-nas.

Em compensação os rapazes e as raparigas elegantes que andam nos estudos e se aborrecem das sebentas e dos mestres, mas são airosos e bem tratados, distraíam-nos.
A gente que anda de papel selado na mão também não pesa. É do comércio geralmente e tem pressa, não faz queixas.
As mulheres dos sacos de oleado com rabos de peixe e rama de hortaliça de fora, muito caladas, atestam-nos que a vida é sempre a mesma. E o nariz do Figueira quando aparece liga em espírito Xabregas ao Campo Santana... A cidade está toda ali! Ali, como em qualquer outra parte.
À noitinha reduzido a pouco todo aquele movimento, apetece chegar-se cada um para o seu canto e fechar um bocadito os olhos. Mas não é isso que faz, olha para os bicos dos pés.


O LAVRA
Irene Lisboa
excertos do texto com o mesmo título incluído no livro Esta Cidade!