Na vasta suspensão do tempo
- Que é que tu esperas do cão? Viveu, tem de morrer.
Não havia ali, porém uma acusação. Havia só o reconhecimento de uma evidência serena. Mas justamente para mim o que era evidente não era a morte, era a vida. Como podia o cão morrer? Como podia morrer a sua pessoa?
Caíra um nevão mais forte e Mondego, com o frio, mal saia da casota. Espreitava ao buraco, não comia e eu não tinha já dúvida de que ele iria morrer. Assim, pelas manhãs, eu corria logo ao quintal, como se a vida do cão dependesse da minha pressa.
- Morre mas leva tempo – disse um dia o António.
Na noite de Natal fomos à missa do galo. Era uma noite perfeita, como a de agora, com uma lua limpa no céu, estrelas vivas coroando a terra. A neve brilhava na montanha, os sinos dobravam para a noite. De nossa casa, só o meu pai não ia à missa. A mulher do António segurava um lampião para ir decifrando os poços de lama que os transeuntes abriam na neve e a lua nem sempre iluminava. Ao longe, nos caminhos da serra, outras luzes brilhavam, no rasto da esperança, convergindo para a igreja.
Subitamente, porém, quando transpúnhamos o portão, tive o choque de um alarme. A casota do cão ficava a um canto do quintal, perto do alpendre onde se arrumavam os bois. Admiti bruscamente que o cão tivesse morrido. E abandonando o grupo, fui sozinho até ao fundo do jardim. À luz da lua, espreitei para a casota; chamei o cão, Mondego não respondeu. Meti a mão dentro – o cão não estava. Presumi, absurdamente, que tivesse rebentado a corrente, se tivesse aninhado no alpendre. Fui para lá, mergulhei para um lado e outro no escuro, chamei: Mondego! Nada. Mas eis que, ao voltar-me para sair, eu vi o cão enfim: suspenso de uma trave, enforcado no arame, Mondego, recortava-se contra o céu, iluminado da lua e de estrelas. Dominei-me, não gritei. E corri para o grupo, que voltava atrás a procurar-me. Desculpei-me como pude e segui para a igreja, chorando duramente: quando Cristo nascia entre cânticos e luzes, Mondego balançava de uma trave o seu corpo leproso, banhado de luar…
No dia seguinte quiseram iludir-me: o cão teria aparecido morto à porta da casota. Não reagi. Levantei-me apenas e fui eu enterrar o animal, para que fosse amortalhado com ternura, para que a última voz da terra a falar-lhe fosse uma voz de aliança.
Já não vejo a lua, que subiu mais no céu. Mas a face da montanha, voltada para mim, ilumina-se toda, branca e solene. E nesta imóvel radiação do silêncio, nesta vasta suspensão do tempo, a morte do Mondego irmana-se à de meu pai, dissolve-se num imenso apaziguamento. Como um olhar gravado de cansaço, a lua vela o ossuário da terra, a profunda surdez me submerge…
APARIÇÃO
Vergílio Ferreira
Não havia ali, porém uma acusação. Havia só o reconhecimento de uma evidência serena. Mas justamente para mim o que era evidente não era a morte, era a vida. Como podia o cão morrer? Como podia morrer a sua pessoa?
Caíra um nevão mais forte e Mondego, com o frio, mal saia da casota. Espreitava ao buraco, não comia e eu não tinha já dúvida de que ele iria morrer. Assim, pelas manhãs, eu corria logo ao quintal, como se a vida do cão dependesse da minha pressa.
- Morre mas leva tempo – disse um dia o António.
Na noite de Natal fomos à missa do galo. Era uma noite perfeita, como a de agora, com uma lua limpa no céu, estrelas vivas coroando a terra. A neve brilhava na montanha, os sinos dobravam para a noite. De nossa casa, só o meu pai não ia à missa. A mulher do António segurava um lampião para ir decifrando os poços de lama que os transeuntes abriam na neve e a lua nem sempre iluminava. Ao longe, nos caminhos da serra, outras luzes brilhavam, no rasto da esperança, convergindo para a igreja.
Subitamente, porém, quando transpúnhamos o portão, tive o choque de um alarme. A casota do cão ficava a um canto do quintal, perto do alpendre onde se arrumavam os bois. Admiti bruscamente que o cão tivesse morrido. E abandonando o grupo, fui sozinho até ao fundo do jardim. À luz da lua, espreitei para a casota; chamei o cão, Mondego não respondeu. Meti a mão dentro – o cão não estava. Presumi, absurdamente, que tivesse rebentado a corrente, se tivesse aninhado no alpendre. Fui para lá, mergulhei para um lado e outro no escuro, chamei: Mondego! Nada. Mas eis que, ao voltar-me para sair, eu vi o cão enfim: suspenso de uma trave, enforcado no arame, Mondego, recortava-se contra o céu, iluminado da lua e de estrelas. Dominei-me, não gritei. E corri para o grupo, que voltava atrás a procurar-me. Desculpei-me como pude e segui para a igreja, chorando duramente: quando Cristo nascia entre cânticos e luzes, Mondego balançava de uma trave o seu corpo leproso, banhado de luar…
No dia seguinte quiseram iludir-me: o cão teria aparecido morto à porta da casota. Não reagi. Levantei-me apenas e fui eu enterrar o animal, para que fosse amortalhado com ternura, para que a última voz da terra a falar-lhe fosse uma voz de aliança.
Já não vejo a lua, que subiu mais no céu. Mas a face da montanha, voltada para mim, ilumina-se toda, branca e solene. E nesta imóvel radiação do silêncio, nesta vasta suspensão do tempo, a morte do Mondego irmana-se à de meu pai, dissolve-se num imenso apaziguamento. Como um olhar gravado de cansaço, a lua vela o ossuário da terra, a profunda surdez me submerge…
APARIÇÃO
Vergílio Ferreira
1 Comments:
Olá!
Isabel, desejo que tenha um ótimo final de ano.Que 2006, inicie repleto de felicidade, saúde e que alcance tudo que você almeja. Beijos
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