04 novembro 2005

Miura





















- Eh! Boi! Eh! Toiro!
A multidão dava palmas.
- Eh! Boi! Eh! Toiro!
Tinha de ser. Já que desejavam tão ardentemente o fruto da sua fúria, ei-lo.
Mas o homem que visou, que atacou de frente, cheio de lealdade, inesperadamente transfigurou-se na confusão de uma nível vermelha, onde o ímpeto das hastes aguçadas se quebrou desiludido.
Cego aquele ludíbrio, tornou a avançar. E foi uma torrente de energia ofendida que se pôs em movimento.
Infelizmente, o fantasma, que aparecia e desaparecia no mesmo instante, escondera-se covardemente de novo por detrás da mancha atordoadora. Os cornos ávidos, angustiados, deram em cor.
Mais palmas ao dançarino.
Parou. Assim nada o poderia salvar. À suprema humilhação de estar ali, juntava-se o escárnio de andar a marrar em sombras. Não. Era preciso ver calmamente. Que a sua raiva atingisse ao menos o alvo.
- Eh! Boi! Eh! Toiro!
Sem lhe dar tempo, com quanta alma pôde lançou-se-lhe à figura, disposto a tudo.
Não trouxesse ele o pano mágico, e veríamos!
Não trazia. E por isso, quando se encontraram e o outro lhe pregou no cachaço, fundas, dolorosas, as duas farpas que erguia nas mãos, tinha-lhe o corno direito enterrado na fundura da barriga mole.
Gritos e relâmpagos escarlates de todos os lados.
Passada a bruma que se lhe fez nos olhos, relanceou a vista pela plateia. Então?!
Como não recebeu qualquer resposta, desceu solitário à consciência do seu martírio. Lá levavam o moribundo em braços, e lá saltava na arena outro farsante doirado.
Ouviu uma voz que o chamava. Quem seria?
Voltou-se. Mas era um novo palhaço. Que trazia também a nuvem, agora pequena e triangular.
Mesmo assim, quase sem tino e a saber que era em vão que avançava, avançou.
Deu, como sempre na miragem enganadora.
Renovou a investida. Iludido, outra vez.
Parou. Mas não acabaria a aquele martírio?
Não haveria remédio para semelhante mortificação?
Num último esforço, avançou quatro vezes. Nada. Apenas palmas ao actor.
Quando? Quando chegaria o fim de semelhante tormento?
Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos congestionados o brilho frio dum estoque.
Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?! Os homens tinham dessas generosidades?!
Calada, a lâmina oferecia-se inteira.
Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem. Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume.


OS BICHOS

Miguel Torga

2 Comments:

Blogger joãoGonçalo said...

o mais curioso em Torga, ou dos muitos aspectos curiosos em Torga (talvez seja melhor assim), é o facto de a sua prosa ser mais poética do que a poesia.

domingo, novembro 06, 2005  
Anonymous Anónimo said...

vejo que o Torga é uma verdadeira paixão por aqui. já opinei que para mim o melhor conto dos bichos é do corvo vicente do final. gosto também muito deste miúra e depois do tenório. os outros parecem-me algo menores. e do Torga pouco mais li, a não ser uma coisa ensossas e muito má que é O Senhor Ventura.

segunda-feira, novembro 07, 2005  

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