Para além da aparência das coisas
Que foi que responderam do ministério, perguntou o delegado do p.d.m., Não sabem que pensar, é natural que o mau tempo esteja a reter muita gente em casa, mas que em toda a cidade suceda praticamente o mesmo que aqui, para isso não encontram explicação, Por que diz praticamente, perguntou o delegado do p.d.d., Em algumas assembleias de voto, é certo que poucas, apareceram eleitores, mas a afluência é reduzidíssima, como nunca se viu, E no resto do país, perguntou o representante do p.d.e., não é só na capital que está a chover, É isso que desconcentra, há lugares onde chove tanto como aqui e apesar disso as pessoas estão a votar, como é lógico são mais numerosas nas regiões onde o tempo está bom, e por falar nisto, dizem que os serviços meteorológicos prevêem melhoria do tempo para o final da manhã, Também pode acontecer que vá de mau a pior, lembrem-se do ditado, ao meio-dia carrega ou alivia, advertiu o segundo vogal, que até agora ainda não tinha aberto a boca. Fez-se um silêncio. Então o secretário enfiou a mão num dos bolsos exteriores do casaco, sacou de lá um telefone portátil e marcou um número. Enquanto esperava que o atendessem, disse, É mais ou menos como o que se conta da montanha e de Maomé, uma vez que não podemos perguntar a eleitores que não conhecemos por que é que não vêm votar, fazemos a pergunta à família que é conhecida, olá, viva, sou eu, sim, continuas aí, por que é que ainda não vieste votar, que está a chover sei-o eu, ainda tenho as perneiras das calças molhadas, sim, é verdade, desculpa, esqueci-me de que me tinhas dito que virias depois do almoço, claro, telefonei-te porque isto aqui está complicado, nem imaginas, se eu te disser que até agora não apareceu ninguém a pôr o voto és capaz de não acreditar, bom, então cá te espero, um beijo. Desligou o telefone e comentou, irónico, Pelo menos um voto está garantido, a minha mulher virá à tarde. O presidente e os restantes membros entreolharam-se, saltava à vista que havia que seguir o exemplo, mas não menos que nenhum deles queria ser o primeiro, seria reconhecer que em rapidez de raciocínio e desembaraço quem leva a palma nesta assembleia eleitoral é o secretário. Ao vogal que tinha ido à porta ver se chovia não lhe custou muito a compreender que ainda teria de comer muito pão e muito sal antes de chegar à altura de um secretário como o que temos aqui, capaz, com a maior sem-cerimónia do mundo, de sacar um voto de um telefone portátil como um prestidigitador tiraria de uma cartola um coelho. Vendo que o presidente, retirado a um canto, falava para casa através do seu portátil, e que outros, utilizando os seus próprios aparelhos, discretamente, em sussurros, faziam o mesmo, o vogal da porta apreciou a honestidade dos colegas que, ao não usarem o telefone fixo ali colocado, em princípio, para uso oficial, nobremente economizavam dinheiro ao estado. O único dos presentes que por não ter telefone portátil tinha de resignar-se a esperar as notícias dos outros era o representante do p.d.e., devendo acrescentar-se, no entanto, que, vivendo sozinho na capital e tendo a família na província, o pobre homem não tem a quem chamar.
ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ
José Saramago
4 Comments:
Que me desculpem os políticos que ainda encaram a política de uma forma séria (francamente não sei por onde andam) mas não resisti em vésperas de eleições colocar um resumo de um Llvro do Saramago sobre o mesmo tema.
Eu por mim acho que vou fazer como os eleitores retratados...nem lá vou por os pés.
Olá!
Off-topic:
Já te pedi a foto do teu frigo??!
http://omeufrigo.blogspot.com/
;-)
Olá Gotinha!
Off-topic (também):
Vou primeiro arrumá-lo e depois mando-te a foto
;)
Eu pus lá os pés, só que votei em branco. Tenho esperança que o homem livre que existe em cada um de nós, na realidade, possa mudar o final descrito no livro.
Cumps.
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