16 setembro 2005

O tamborilar da chuva

Prenderam-me em Novembro de 1591 e, durante quase onze meses, não falei a mais ninguém para além do guarda prisional. Nem fui informado das acusações que pendiam sobre mim nem autorizado a ler fosse o que fosse, e a minha janela, uma fenda mesquinha na pedra nuca, estava tão alta que não me permitia espreitar para a cidade lá em baixo. A esperança agarrava-se às recordações de Tejal, e por vezes, também, ao tamborilar da chuva, a qual me lembrara que havia um mundo onde os meus carcereiros não tinham poder. Uma vez, durante uma tempestade, pus-me a lamber umas gotas que escorriam pela parede. Souberam-me ao Riacho do Moinho e, por uns instantes, os meus pensamentos chapinharam em toda a minha liberdade de criança, mas muitas vezes penso que acabaram por me trair; nessa mesma noite, Deus foi-me roubado, e, ao acordar, senti-me mais sozinho do que alguma vez já estivera, expulso do mundo sobre o qual Ele sempre velara. Nunca mais haveria de sentir os dedos dos meus pés afundarem-se na terra vermelha do arrozais ou saber se Tejal já dera à luz um rapaz ou uma menina.
Silenciosamente, pedi perdão ao meu pai por não fazer a vida melhor que ele desejara para mim, e fui buscar o precioso instrumento feito de ferrugem e ponta acerada que escondera no fundo do penico havia umas semanas. Farejando-lhe o odor sagrado de desígnio metálico, confiante na derrota como a minha última amiga, sulquei com ele um braço e depois o outro. O meu retrato final havia de ser quente e desenhado no meu próprio sangue, como se impunha.
Percebi que era um homem amaldiçoado quando nem sequer, apesar das minhas preces, conseguia afundar o prego o suficiente para fazer o milagre de que precisava. Mesmo assim, sangrei bastante, e o rio que fica além do Sabat levou-me para longe na sua corrente. Pousando a cabeça na verdade das suas águas, sonhei com um horizonte de pinheiros e cedros muito ao longe a ocidente, nas margens do rio Jordão.
Tejal seria informada da minha morte; agora ficaria livre para casar com outro homem. Isso valia bem o preço que eu tinha de pagar.
Acordei sobressaltado e dei com um padre que nunca tinha visto antes a atar-me os braços, suando, com umas cordas grosseiras. Pedi-lhe que me deixassO tambolirar e em paz, mas ele continuou o seu trabalho e atirou-me para o catre com um resmungo de repugnância. Tentando impedir a queda, puxei-lhe pelo rosário, e as contas espalharam-se pelo chão.
- Mulato fi de puta! – gritou-me. – Ainda hás-de confessar!
Não, pensei na voz da criança que já fora. Mesmo não sendo quem já fui, a minha alma ainda tem cola suficiente para não me deixar assim tão facilmente.
Dois guardas puseram-se de quatro – homens transformados pela encantação do meu desprezo em ursos que gatinhavam. Por qualquer razão que não descortino, comecei a pintar listas de tigre na cara com sangue dos meus pulsos. Pouco depois, lembrei-me da alcunha que Wadi me dera e pensei: Sim, tenho de me tornar noutra espécie de ser, um ser feroz; senão, ponho-me a dizer o nome de outras pessoas e condeno-as a um destino igual ao meu.


GOA OU O GUARDIÃO DA AURORA
Richard Zimler

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

António,
Comprei este livro por curiosidade:
- um autor americano que dá aulas de jornalismo no Porto e escreve um romance histórico passado em Goa, é no minimo ...curioso.
Mas confesso que fiquei agradavelmente surpreendida, é uma obra de personagens e histórias complexas mas envolvente do principio ao fim.
Recomendo!
Um abraço

sexta-feira, setembro 16, 2005  

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