06 setembro 2005

Passear os dias

Fausto Bendito Ventura fez-se alfarrabista por distracção. Orgulhava-se de nunca ter trabalhado na vida. Saía de manhã cedo a passear pela Baixa, malembe-malembe, muito aprumado no seu fato de linho, chapéu de palha, laço e bengala, cumprimentando amigos e conhecidos com um leve toque do dedo indicador na aba do chapéu. Se acaso se cruzava com alguma senhora do seu tempo, dedicava-lhe a luz de um sorriso galante. Soprava: Bom dia, poesia. Atirava piropos apimentados às empregadas dos bares. Conta-se (contou-me Félix) que um dia um invejoso o provocou: «Afinal, o que faz o senhor nos dias úteis?» A réplica de Fausto Bendito, Todos os meus dias são inúteis, cavalheiro, eu os passeio, ainda hoje desperta palmas e gargalhadas entre o magro círculo de antigos funcionários coloniais que, nas tardes exânimes da gloriosa Cervejaria Biker, persistem em eludir a morte, jogando cartas e contando casos. Fausto almoçava em casa, dormia a sesta, e depois sentava-se à varanda, a fruir a fresca brisa da tarde. Naquela época, antes da independência, ainda não havia o muro alto, a separar o jardim do passeio, e o portão estava sempre aberto. Aos clientes bastava galgar um lance de escadas para ter livre acesso aos livros, pilhas e pilhas deles, dispostos ao acaso no forte soalho do salão. Partilho com Félix Ventura um amor (no meu caso sem esperança) pelas palavras antigas.
A Félix Ventura quem o educou neste sentimento foi, primeiro, o pai, Fausto Bendito, e a seguir um velho professor, dos primeiros anos do liceu, sujeito de modos melancólicos, alto, e de tal forma delgado que parecia caminhar sempre de perfil, como uma gravura egípcia. Gaspar, assim se chamava o professor, comovia-se com o desamparo de certos vocábulos. Dava com eles abandonados à sua sorte, nalgum lugar ermo da língua, e procurava resgatá-los. Usava-os com ostentação e persistência, o que consternava uns e desconcertava outros. Creio que triunfou. Os seus alunos começaram por utilizar esses vocábulos, primeiro por troça, e a seguir como uma gíria íntima, uma tatuagem tribal, que os fazia distintos da restante juventude. Hoje, assegurou-me Félix, são ainda capazes de se reconhecerem uns aos outros, mesmo quando nunca se viram antes, às primeiras palavras. «Ainda tremo de cada vez que ouço alguém dizer edredão, um galicismo hediondo, em vez de frouxel, que a mim me parece, e estou certo que você concordará, palavra muito bela e muito nobre. Mas já me conformei com sutiã. Estrofião tem uma outra dignidade histórica. Soa, todavia, um pouco estranho – não concorda?»


O VENDEDOR DE PASSADOS
José Eduardo Agualusa

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Desafiei-te...

terça-feira, setembro 06, 2005  
Anonymous Anónimo said...

até que enfim que encontro alguém que gosta do Agualusa. O Vendedor de Passados é muito bom, e no mesmo nível anda O Ano Em que o Zumbi Tomou conta do Rio de Janeiro, julgo que o título é assim. ah, e não esquecendo Um Estranho em Goa.

quinta-feira, setembro 08, 2005  
Anonymous Anónimo said...

Tenho que confessar que este é, por enquanto, o único livro que li do José Eduardo Agualusa.
Confesso que fiquei com vontade de "descobrir" mais obras do autor.
Obrigado pelas sugestões!

quinta-feira, setembro 08, 2005  

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