19 julho 2005

A maré inquieta da mudança

Li algures – deve ter sido num conto de fadas – que todos os homens estão secretamente apaixonados pela sua própria morte, perseguindo-a com o mesmo desespero de um amante contrariado.
Se Effie não me tivesse contado, com a voz de Marta, que Henry Chester era o Eremita, tê-lo-ia adivinhado quando ele voltou para casa naquela noite, a cambalear e com aquele brilho sinistro no olhar. Porque eu soube nesse momento que algures, na sua alma culpada, ele a tinha reconhecido – não, Effie não, a pobre criatura desorientada à espera que uma mais forte se apodere de si, mas Marta, a minha Marta, a palpitar de vida por detrás dos olhos de Effie… Sim, ele reconheceu-a, o velho Eremita, e foi atraído pela sedução gélida do sepulcro.
Naquela altura, eu conseguia ver coisas – ainda consigo, quando me sinto disposta a fazê-lo – e pressenti o seu desejo lúgubre e alimentei-o. Há ervas que turvam o espírito e raízes que o despertam, poções que abrem os olhos da alma e outras que dobram a realidade em formas delicadas como pássaros de papel… e há espíritos, sim, e espectros, acreditem ou não neles, que vagueiam pelos corredores do coração de um homem culpado à espera de uma oportunidade para renascerem.
Podia contar-lhes como vi a minha mãe insuflar vida num homem de barro, segredando estranhas memórias na sua cabeça sem cérebro, e do homem verdadeiro que enlouqueceu; ou da raiz que a bela rapariga comeu para falar com o amante morto, ou da criança doente que abandonou o corpo e voou para onde o pai jazia moribundo para sussurrar uma oração ao ouvido do velho… vi tudo isso e muito mais. Abanem a cabeça e acreditem na ciência se quiserem. Há cinquenta anos, a vossa ciência teria sido considerada magia. As coisas mudam, sabem, como a maré inquieta da mudança. Transporta-nos sobre as suas águas obscuras e secretas. A maré devolve os seus mortos, é uma questão de fé e de tempo. Tudo de que precisávamos, nós as duas, era de algum tempo. Eu, para a trazer para mais perto. Marta de tempo para recuperar forças.
Estávamos à espera.


VALETE DE COPAS E DAMA DE ESPADAS
Joanne Harris

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

terça-feira, julho 19, 2005  
Anonymous Anónimo said...

Mais um livro de uma das minhas autoras preferidas.
Diferente dos que já tinha lido mas à semelhança dos outros romances desta autora, viciante do principio ao fim. Recomendo!

terça-feira, julho 19, 2005  

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