04 julho 2005

O sabor doce da chuva


Chovia no dia em que Lizzie nasceu. Não aqueles aguaceiros com que Deus abençoa os recém-nascidos, mas uma chuvada forte, ruidosa, uma cortina de água que transformou os relvados cuidadosamente aparados em esponjosas extensões de lama.
O deus da chuva estava zangado.

Quando construíram o beiral saliente do telhado para proteger as paredes caiadas da casa, não levaram em conta as suas fúrias. Ou se calhar levaram.
Talvez o deus da chuva não tivesse gostado de saber que tinham posto ali aquela espécie de barreira para impedi-lo de fazer sentir a sua fúria. Ou talvez não houvesse um deus da chuva.
Chandi encostou-se à parede e pensou nessas coisas todas enquanto lambia as gotas de chuva que pingavam do seu nariz.
Apesar de violenta, a chuva tinha um sabor doce.
As paredes brancas ficaram salpicadas de manchas cinzentas de humidade que costumavam permanecer, como uma leve acusação, até muito depois de as chuvas terminarem.
Não era apenas do nariz de Chandi que caíam pingos de chuva. Escorriam, como minúsculos afluentes, pela sua nuca, pelos lados da cabeça onde mergulhavam, indolentes, nas espirais das orelhas, para depois prosseguirem o seu curso e desembocarem nos regatos que lhe desciam pelas pernas.
Perguntou a si próprio se o escoadouro a seus pés iria dar a um rio que ia dar ao mar. Nunca tinha visto o mar, pois as imponentes montanhas mantinham-no, com eficácia, fora de vista, mas sabia da sua existência porque ouvira histórias acerca dele.
Por aqueles lados chamavam-lhe o lago que ruge. O ho gana pokuna.
A sua camisa, demasiado apertada, estava ensopada e colava-se à sua pele como a lesma à parede atrás dele. Afastou-a da barriga, mas quando a largou ela voltou ao mesmo lugar. Uma pequena poça de chuva acumulara-se no seu umbigo, que ele apertou para a água poder sair e reunir-se ao rio que corria para o mar.
Os calções eram grandes de mais. Estavam sempre a escorregar e ele sempre a puxá-los para cima. Haviam pertencido ao filho de Sudu Mahattaya, o que estava fora, em Inglaterra. Tinham quadrados vermelhos e verdes e um cinto a fingir.
Eram os seus calções preferidos e só queria não os ter vestido naquele dia. Receava que os quadrados vermelhos e verdes se diluíssem na chuva, como a cal das paredes. Nada disso acontecera ainda, mas mesmo assim estava preocupado.
Chandi lembrou-se da razão pela qual tinha vestido os seus calções preferidos. Era o dia do seu quarto aniversário, embora ninguém se tivesse lembrado, excepto ele.

O RAPAZ QUE VENDIA FLORES
Karen Roberts