24 junho 2005

Nada muda.


Devia esperar aquilo. De certo modo tinha estado à espera que aquilo acontecesse, já tinha imaginado essa rejeição anos antes. Apesar disso, magoou-me; depois da morte da Mãe e da partida de Adrienne, tinha com certeza o direito de esperar uma resposta.
As coisas poderiam ter sido diferentes se eu fosse rapaz. GrosJean, como a maior parte dos homens da ilha, queriam filhos rapazes: filhos para trabalharem no estaleiro, para cuidarem da sepultura familiar. As raparigas com todas as despesas que acarretava, não tinham qualquer interesse para GrosJean Prasteau. Uma filha primogénita já fora suficientemente mau; uma segunda, quatro anos mais tarde, tinha posto fim ao pouco que restava da intimidade dos meus pais. Cresci tentando reparar o desapontamento que causara, usando o cabelo curto para lhe agradar, evitando a companhia de outras raparigas para merecer a sua aprovação. Em certa medida tinha resultado: às vezes deixava-me acompanhá-lo na pesca da perca na rebentação ou levava-me até aos bancos de ostras com os forcados e os cestos. Eram para mim momentos preciosos, que eu não deixava escapar quando às vezes a minha mãe e Adrienne iam juntas a La Houssinière; momentos guardados avidamente em segredo.
Ele falava comigo nessas alturas, mesmo quando já não falava com a minha mãe. Mostrava-me os ninhos das gaivotas e os areais ao largo de La Jetée onde as focas regressavam todos os anos. Às vezes encontrávamos coisas trazidas pelo mar para a praia e levávamo-las para casa. E, uma vez por outra, muito esporadicamente, contava-me histórias e velhos ditados das ilhas. Tudo retorna. Era o seu preferido.
- Lamento. – Era a voz de Flynn. Devia ter-se aproximado por detrás de mim, silenciosamente, quando eu estava de pé junto à sepultura de P’titJean.
Assenti com a cabeça. Tinha a garganta irritada como se tivesse estado a gritar.
- A verdade é que ele não fala com ninguém – disse Flynn.
- Quase só se exprime por gestos. Acho que não o ouvi falar mais do que uma dúzia de vezes desde que cá estou e mesmo nesses casos habitualmente não passa de um sim ou não.
Vi uma flor vermelha a flutuar na água mesmo ao lado do trilho. Observei-a, sentindo-me nauseada.
- Então ele fala contigo – disse eu
- Às vezes.
Sentia a presença dele ao meu lado. Estava perturbado, queria consolar-me e por momentos tudo o que desejei foi aceitar. Sabia que podia virar-me para ele – era suficientemente alto para poder pousar a minha cabeça no seu ombro – e cheiraria a ozone e a mar, e à lã grosseira da camisola. Por baixo da camisola, sabia que a sua pele era quente.
- Mado, lamento…
Olhei em frente sem o fitar, com uma expressão vazia, detestando a sua piedade e detestando a minha própria fraqueza.
- Maldito velho. Continua com os jogos dele. – Inspirei o ar, devagar e demoradamente. – Nada muda.
Flynn olhou para mim apreensivo.
- Sentes-te bem?
- Sinto.


A PRAIA ROUBADA
Joanne Harris
2002

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caro António,
Obrigado pelos seus comentários.
É sempre bom "conversar" com quem partilha o mesmo gosto pelos livros como eu.
Um abraço

segunda-feira, junho 27, 2005  
Anonymous Anónimo said...

Uma autora genial.
"Devorei" todos os livros dela em meses. Esperam que os releia em breve...
Tive o prazer de "conhecer" a autora numa sessão de autógrafos. De muito bom trato. Uma Senhora.
Vale muito a pena lê-la.
Mesmo para quem não aprecie muito o prazer da leitura, recomendo "Danças e Contradanças", a penúltima publicação dela.
Boas leituras e continuação do bom blog!

Chuac-Quack***

segunda-feira, junho 27, 2005  

Enviar um comentário

<< Home