06 junho 2005

Um diário para a eternidade


Querida Kitty,

“Pequeno feixe de contradições.” Foi assim que terminei minha última carta e é assim que desejo principiar esta. “Um pequeno feixe de contradições.” Pode me dizer exactamente o que é isto/Que quer dizer contradição? Como acontece com tantas outras palavras, pode significar duas coisas: contradição de fora e contradição de dentro.

A primeira é a costumeira “não cede facilmente, sempre sabe mais, tem sempre a última palavra”, enfim, todas as qualidades desagradáveis de que me acusam. Da segunda, ninguém sabe, o segredo é meu.

Já disse a você, certa vez, que possuo dupla personalidade. Em uma delas encontra-se minha alegria exuberante, que faz graça de tudo, meu entusiasmo e principalmente a maneira como levo tudo na brincadeira. Talvez por isso não me ofenda um flirt, um beijo, um abraço, uma anedota suja. Esta está quase sempre à espreita e empurra o outro, que é muito melhor, mais profundo e mais puro. Você precisa compreender que ninguém conhece o lado melhor de Anne, e é por isso que a maioria das pessoas me acha insuportável. Se durante uma tarde faço uma porção de palhaçadas, todos se fartam de mim por um mês. Realmente, é como filme de amor para pessoas de mentalidade séria: simples distracção que diverte, sem chegar a ser boa. Envergonho-me de contar isso a você, mas como é verdade, vou falar. O meu lado superficial e frívolo está sempre mais alerta que o lado profundo, e por isso há de sair sempre vencedor. Você nem imagina quantas vezes tentei empurrar para longe essa Anne. Tentei mutilá-la, escondê-la, porque, afinal de contas, ela é apenas metade do total que se chama Anne; mas não adianta, e eu sei, também, por que não adianta.

Tenho muito medo de que as pessoas que me conhecem superficialmente venham a descobrir que possuo um outro lado, melhor, mais bem-cuidado. Receio que riam de mim, que me achem ridícula e sentimental, que não me levem a sério. Estou acostumada a não ser levada a sério, mas é só a Anne despreocupada que se acostumou a isso e o suporta. A Anne mais profunda é sensível demais para tal. Se realmente obrigo a Anne boa a ir para o centro do palco, nem que seja por quinze minutos, ela se encolhe toda e acaba cedendo o lugar à Anne número 1, e antes que perceba o que se passa, vejo que desapareceu.

A boa Anne, portanto, não aparece quando tem gente, até hoje nunca se mostrou, nem uma só vez, mas é a que predomina quase sempre quando estamos a sós. Sei exatamente como desejaria ser, como sou, aliás... lá no íntimo. Infelizmente sou assim só para mim mesma. E estou certa de que é por isso mesmo que eu digo que intimamente tenho um gênio bom e que os outros pensam que exteriormente é que tenho gênio bom. No íntimo sou guiada pela Anne pura , mas exteriormente não passo de uma cabritinha travessa, à solta.

Como já disse, nunca expresso meus sentimentos verdadeiros sobre coisa alguma, e foi assim que adquiri a fama de namoradeira, sabe-tudo e leitora de histórias de amor. A Anne jovial dá risada, uma resposta atrevida, sacode os ombros com indiferença, comporta-se como se não ligasse, mas as reações da Anne silenciosa são exatamente o oposto. Para ser sincera, devo admitir que isso me magoa, que tento mudar por todos os meios, mas que estou sempre em luta contra um inimigo muito mais poderoso.

Dentro de mim soluça sempre a mesma voz: “Pronto, nisto é que você se tornou! Sem caridade, ares superiores, atrevida. Ninguém gosta de você, e isso por você não atender aos conselhos da sua metade melhor”.


Bem queria atender, mas não adianta; se fico sossegada e séria, todos pensam que estou tramando alguma e, então, tenho que sair da situação inventando nova brincadeira; isso sem falar na minha própria família, que certamente pensaria que estou doente e me faria engolir comprimidos para dor de cabeça, para os nervos, me apalparia o pescoço e a cabeça para ver se tenho febre, me perguntaria se ando com prisão de ventre e, não achando nada, acabaria me criticando por meu mau humor. Não aguento esses cuidados: se me fiscalizam fico malcriada, depois infeliz e, finalmente, viro o meu coração do avesso para que o lado mau fique de fora e o bom para dentro, e continuo tentando encontrar a maneira de ser como desejo ser, como poderia ser, se... se não houvesse mais ninguém vivo neste mundo...

Anne.

~ Epílogo ~
No dia 4 de Agosto de 1944 a Polícia de Segurança Alemã, acompanhada por alguns holandeses nazis, fez uma rusga ao escritório geral, obrigando Kraler a revelar a entrada para o Anexo Secreto. Todos os seus ocupantes, foram presos. No dia 3 de setembro, os prisioneiros judeus, após um período em Westerbork (o principal campo de concentração alemão na Holanda), foram enviados, amontoados em vagões de gado, para Auschwitz, o mais famoso centro de extermínio, na Polônia ocupada. As duas irmãs, foram enviadas para Bergen-Belsen, na Alemanha, dois meses após a morte da mãe. Ali Anne mostrou as mesmas qualidades de coragem e paciência na adversidade que a haviam caracterizado em Auschwitz. Em Fevereiro de 1945, as duas irmãs contraíram tifo. Um dia, Margot, deitada num beliche ao lado da irmã, tentou levantar-se, mas, enfraquecida, caiu ao chão. No seu estado de doença e fraqueza, o choque foi mortal. A morte da irmã fez a Anne o que nada até então conseguira fazer: quebrar o seu espírito. Alguns dias depois, no princípio de Março, Anne morreu.

O DIÁRIO DE ANNE FRANK
1947


1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Comemora-se hoje o Dia-D, dia em que tropas aliadas desembarcaram nas praias da Normandia, dando assim início à queda do império alemão personalizado por aquela figura ridícula do homenzinho do bigode também ele ridículo.
Este livro marcou a minha adolescência, quando lá em casa acharam que estava na altura de começar a perceber que o mundo nem sempre é cor de rosa e como tal o recebi de oferta.
Continua guardado num sítio especial na estante, agora à espera que a minha filha cresça.
Hoje achei que era um bom dia para "falar" nele e não deixar passar em branco um dos períodos mais tristes e negros da história da humanidade.
Fiquem bem!
Isabel

segunda-feira, junho 06, 2005  

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