À margem da vida
Ao longo daqueles dias, a verdade surgira-lhe com toda a sua intolerável crueza: fora por cobardia que se alimentara de esperanças oca, para ficar com ele, não era capaz de viver sem ele. Não tinha sequer a desculpa de um amor generoso, o sofrimento e o rancor haviam morto já tudo o que fora amor. Chegara ela alguma vez a amá-lo?
Estugou o passo. Houvera Pierre. Se ele lhe tivesse dado a sua vida, talvez nunca tivessem chegado a existir nela tantas divisões e mentiras. Talvez também para ela o mundo tivesse sido cheio e ela tivesse conhecido a paz do coração. Mas agora acabara-se; apressava-se para ir ter com ele sem achar dentro de si mais do que um desejo desesperado de lhe fazer mal.
Subiu as escadas, acendeu as luzes. Antes de sair, deixara a mesa posta e a ceia estava realmente com um belo aspecto. Também ela estava com um belo aspecto, com a sua saia escocesa e a maquilhagem bem cuidada. Se se visse aquele cenário num espelho, poderia pensar-se que se tratava de um velho sonho realizado. Quando tinha vinte anos, no seu quartinho triste, preparava para Pierre fatias de carne de porco, garrafas de vinho tinto, e imaginava por brincadeira que lhe estava a oferecer uma ceia requintada, com foie gras e Borgonha velho. Agora o foie gras estava na mesa, ao lado das fatias barradas com caviar e havia xerez e vodka nas garrafas; Elisabeth tinha dinheiro, conhecimentos, um começo de fama. E todavia continuava a sentir-se à margem da vida; esta ceia não passava de uma imitação de ceia, numa imitação de estúdio elegante. E ela não passava de uma paródia viva da mulher que pretendia ser.
Partiu um petit four entre os dedos. O jogo era divertido outrora, era uma antecipação de um futuro brilhante; ela já não tinha futuro; sabia que em parte nenhuma, sabia que nunca atingiria um modelo autêntico do qual o seu presente era uma cópia. Nunca conheceria mais nada para lá destas falsas aparências. Era um feitiço que fora lançado: ela transformava tudo aquilo em que tocava em coisas de papelão.
A CONVIDADA
Simone de Beauvoir
Estugou o passo. Houvera Pierre. Se ele lhe tivesse dado a sua vida, talvez nunca tivessem chegado a existir nela tantas divisões e mentiras. Talvez também para ela o mundo tivesse sido cheio e ela tivesse conhecido a paz do coração. Mas agora acabara-se; apressava-se para ir ter com ele sem achar dentro de si mais do que um desejo desesperado de lhe fazer mal.
Subiu as escadas, acendeu as luzes. Antes de sair, deixara a mesa posta e a ceia estava realmente com um belo aspecto. Também ela estava com um belo aspecto, com a sua saia escocesa e a maquilhagem bem cuidada. Se se visse aquele cenário num espelho, poderia pensar-se que se tratava de um velho sonho realizado. Quando tinha vinte anos, no seu quartinho triste, preparava para Pierre fatias de carne de porco, garrafas de vinho tinto, e imaginava por brincadeira que lhe estava a oferecer uma ceia requintada, com foie gras e Borgonha velho. Agora o foie gras estava na mesa, ao lado das fatias barradas com caviar e havia xerez e vodka nas garrafas; Elisabeth tinha dinheiro, conhecimentos, um começo de fama. E todavia continuava a sentir-se à margem da vida; esta ceia não passava de uma imitação de ceia, numa imitação de estúdio elegante. E ela não passava de uma paródia viva da mulher que pretendia ser.
Partiu um petit four entre os dedos. O jogo era divertido outrora, era uma antecipação de um futuro brilhante; ela já não tinha futuro; sabia que em parte nenhuma, sabia que nunca atingiria um modelo autêntico do qual o seu presente era uma cópia. Nunca conheceria mais nada para lá destas falsas aparências. Era um feitiço que fora lançado: ela transformava tudo aquilo em que tocava em coisas de papelão.
A CONVIDADA
Simone de Beauvoir
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