Um homem não chora
Maria Cantigas chama a isto «ser ele muito senhor do seu nariz», o que o arrenegou muitas vezes quando mais criança, pois deu-se em traduzir o dito da mãe como sinal de que o nariz lhe nascera maior que a conta.
Foi desgosto sofrido a fogo lento. Sentiu-se caraça de Carnaval, daquelas de narigueta avermelhada e torta, vendo em tal defeito a razão de a mãe se perder em mimos mais escolhidos com a irmã, a Ana Maria. Viveu um ciúme pegado. Até refilava por não andarem com ele ao colo, o que só provocava risota e lhe acrescentava o despeito.
Passou tempos esquecidos a mirar-se ao espelho, num confronto minucioso com todas as caras conhecidas, e jurava a pés juntos, que não era nenhuma nariganga.
O diabo da mulher – refilava ele – nem parece que lhe pertenço; mais valia torcer-me o pescoço quando nasci.
O pai via-o amuado pelos cantos, perguntava às mulheres de casa:
- O que diabo tem o rapaz?!
E como ninguém lhe explicasse aquela tristeza. Trouxe-o uma tarde para junto do Tunante, o cão guardador do curral das vacas.
Ali se puseram à conversa.
Foi a primeira conversa a sério que Silvestre Cuco teve com o filho. Este nunca mais esqueceu tal dia, em que fez uma das descobertas mais surpreendentes da sua vida.
Falaram de homem para homem. Sim, senhor, de homem para homem, e o Constantino sabe bem o que lhe custou essa conquista.
Quando se abriu com o pai para lhe confessar que a mãe não gostava dele por causa do nariz, apareceu-lhe de repente nos olhos uma grande vontade de chorar. Embargou-se-lhe a voz, as palavras começaram a sair todas cortadas, e vai então o pai disse-lhe assim:
- Um homem nunca chora, mesmo que veja as tripas de outro na mão…
Apressado, o Constantino deitou a ponto dos dedos a umas lágrimas que queriam rebentar, e ali esmo as esmagou, segurando as outras todas que já vinham numa carreirinha para fazerem pranto. Baixou a cabeça por instantes, erguendo-a depois com um sorriso. Encararam-se, o pai incitou-o com um olhar que ele conhecia, e o Constantino percebeu que ganhara nesse dia o seu melhor camarada.
- Assim mesmo… Um homem não chora…
- Já sou homem?
- És. És um homem valente. Queres ser um homem valente?
- Quero. Quero, sim senhor, meu pai.
- Então nunca mais julgues que a tua mãe gosta mais da Ana Maria do que de ti… A tua irmã é pequenita…
E eu sou um homem, não é?
Pois, tu és um homem…Um homem pequeno…
Mas ela metia-se com o meu nariz, e o meu nariz não é grande…
- Ela só queria dizer que tu és teimoso.
Riram ambos com gosto. E tanto, como dois bons camaradas, que a Ti Elvira veio à porta de casa para descobrir o que se passava. Ficou na mesma; mas bastou-lhe à curiosidade ver o filho e o neto tão deslumbrados um com o outro.
CONSTANTINO GUARDADOR DE VACAS E DE SONHOS
Alves Redol
1962
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