03 maio 2005

Que cor têm o mundo?

«Que cor tem o mundo na tua cabeça?» A frase partira, de certeza, de Jacinta. Não podia ser da Cristina. Esta teria reparos mais concretos. Dela previa-se, por exemplo, coisas assim: «Pela tua rica saúde, não voltes a pôr o jornal em cima do meu chapéu branco», a que poderia acrescentar, amaciando um tudo-nada a voz se os outros tivessem notado a aspereza; «Suja-se todo.» E ele não voltaria a atirar o jornal ao acaso, para não se expor a vê-lo cair sobre o chapéu branco. O chapéu de Maria Cristina. As coisas de Maria Cristina, de que ele fazia parte.

E fora talvez por isso que acontecera Jacinta. Mas nessa rebelião, e não precisamente infidelidade, a que pela primeira vez se ousara (um medir de forças que começava e terminava dentro dele, sem coragem de o desvelar aos olhos de Maria Cristina), só havia lugar para o efémero. Jacinta era um pretexto e, simultaneamente, um acidente que, se ainda durava, se ia talvez durar por muito tempo, isso se devia à sua tibieza nas tentativas de o dar por findo.

Vasco não saberia dizer o que o ligava a Maria Cristina (o hábito? O medo?); sabia, porém, que se tornara por assim dizer irremediável continuarem juntos, para se amarem ou suportarem à sua maneira, para se acusarem, para, num e noutro, concretizarem as suas frustrações. Por isso, nas relações com Jacinta., procurava quase sempre que nelas só coubessem a fugacidade dos sentidos. Queria ver nela apenas a mulher que precisa do prazer. Nesses momentos, as palavras não tinham, astúcia nem memória, ainda que fossem expansões em que aflorava a mentira que veste o desejo e o faz mais autêntico e apetecido.


OS CLADESTINOS
Fernando Namora
1971