26 abril 2005

A reconciliação

Na noite em que morreu fechei-me com ela. Depois de tantos anos sem nos falarmos, partilhámos aquelas últimas horas repousando no veleiro de água mansa da seda azul, como ela gostava de chamar à sua cama, e aproveitei para lhe dizer tudo o que não pudera dizer-lhe antes, tudo o que eu tinha calado desde a noite terrível em que lhe bati.

Tirei-lhe a camisa de dormir e revistei-a com cuidado procurando algum sinal de doença que justificasse a sua morte e, não o encontrando, soube que simplesmente tinha cumprido a sua missão nesta terra e voara para outra dimensão onde o seu espírito, livre por fim dos lastros materiais, se sentiria mais a seu gosto.

Não havia nenhuma deformidade nem nada terrível na sua morte. Examinei-a demoradamente, porque fazia muitos anos que não tinha ocasião de a observar à vontade e nesse tempo a minha mulher tinha mudado, como nos acontece a todos com o avançar da idade. Pareceu-me tão formosa como sempre. Tinha adelgaçado e julguei que tinha crescido, que estava mais alta, mas logo compreendi que era um efeito ilusório, resultado do meu próprio mirrar.

Antes sentia-me como um gigante a seu lado, mas ao deitar-me com ela na cama, notei que éramos quase do mesmo tamanho. Tinha a sua mata de cabelo encaracolado e rebelde que me encantava quando casamos, suavizada por mechas brancas que lhe iluminavam o rosto adormecido. Estava muito pálida, com sombras nos olhos e notei pela primeira vez que tinha pequenas rugas muito finas na comissura dos lábios e na testa. Parecia uma menina. Estava fria, mas era a mulher doce de sempre e pude falar-lhe tranquilamente, acariciá-la, dormir um pouco quando o sono venceu a dor, sem que o facto irremediável da sua morte alterasse o nosso encontro. Reconciliámo-nos por fim.


A CASA DOS ESPÍRITOS
Isabel Allende
1987