15 abril 2005

Um espectáculo de muitas mortes

A essa hora Alexandra estava deitada na guerra de um homem que recordava mortes vividas. Ninguém acreditava, dizia o homem, mas as florestas tinham tantos olhos como folhas e o capim explodia; no capim alto de Maleja Namba havia terroristas de olhos acesos a todas as horas. Às escuras, Alexandra escutava o guerreiro cansado, como se ele estivesse a ler na noite uma África infestada de minas e de colunas militares a baterem as picadas, e lembrava-se do Beto que pairava longe, na Escócia, mas cada dia mais perto da guerra à medida que as colunas de soldados avançavam e se perdiam.

Negros arrastados vivos por camiões, missas de guerra; o furor do napalm, aldeias em labaredas; troféus. Dentro de três, quatro anos, seria a vez do Beto, a idade do morticínio. Depois, quando voltasse, e se voltasse, chegaria terrivelmente morto por dentro como o homem que recordava, naquela cama, batalhas de matadores inocentes e de heróis assassinos. Assassinos, sobretudo – esses é que ele rememorava. O tenente Max Bruto, o sanguinário capitão Robles. Por exemplo. Em Maleja Namba as hienas enlouqueciam, a rondar os cemitérios, com o cheiro da carne fresca, recordava o vulto deitado com Alexandra.

Alexandra contornou-lhe a face com um dedo demorado, configurando-a, meditando-a – insistia em reconhecê-lo? Mas era ele, o Doutorzinho; apesar da barba e do olhar emudecido, era ele, o menino das bruxas, o Doutorzinho soldado tantas vezes lembrado e com que urgência, com que desejo. Alexandra estreitou-o muito contra si.

Sentia-o empedernido, um corpo que a guerra tinha deixado nulo, incapaz de amar, rejeitando-o a seguir, vencido e apavorado. Neurose, ele próprio confessara há pouco. Depressão. O preço do espectáculo de muitas mortes, concluía Alexandra abraçada a ele.


ALEXANDRA ALPHA
José Cardoso Pires
1987