11 abril 2005

A música é a negação das frases

Para ele, a música é libertadora: liberta-o da solidão e da clausura. Liberta-o da poeira das bibliotecas e abre-lhe portas no corpo por onde a alma pode sair e confraternizar. Gosta de dançar e tem pena que Sabrina não partilhe essa sua paixão.

Lembrou-se da música barulhenta do restaurante e pensou: «o ruído tem uma vantagem. É que as palavras não se ouvem.» Desde a juventude não fizera outra coisa senão falar, escrever, dar aulas, inventar frases, exemplificar fórmulas, corrigi-las, de tal maneira que as palavras já não tinham nada de exacto, o sentido esbatia-se-lhes, perdiam o conteúdo e só ficavam migalhas, moinhas, poeira, areia que lhe flutuava no cérebro e lhe fazia dor de cabeça, que era a sua insónia, a sua doença. Apeteceu-lhe então, confusa e irresistivelmente uma música enorme, um ruído absoluto, uma barulheira infernal que se espalha-se sobre todas as coisas, inundasse tudo, abafa-se tudo, onde a dor, a vaidade e a mesquinhez das palavras perecessem para todo o sempre. A música era a negação das frases, a música era a anti-palavra! Apetecia-lhe ficar enlaçado para sempre com Sabrina, apetecia-lhe calar-se, nunca mais pronunciar palavra e deixar o prazer confluir no clamor orgástico da música. Foi nessa bem-aventurada barulheira que adormeceu.


A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER
Milan Kundera
1983