08 abril 2005

O calor da memória

Pela noite de estrelas, lúcida, definitiva, como um cristal. Venho à janela, olho-a, noite primitiva. E uma alegria intrínseca, em filigrana, no espaço rarefeito. Que é que me dói? Qualquer coisa que perdi há muito tempo e já não me lembra. Devia ser muito bela. Tão bela que nunca a soube. Porque no que não se sabe é que a beleza é grande. Uma mão terna na face, um cálido choro. Não um choro pelo que se me perdeu, mas apenas choro por mim. Como as crianças, quando já se esqueceram as razões e choram ainda. Que é que me dói? Onde é que é? Tão frágil assim. Como a um breve abalo da terra e a casa desmoronada e eu subitamente nu. Construí a minha força com aplicação, metodicamente, que é que é nosso? Pelo céu grande e negro, trémulo de estrelas, meu olhar grave. Regresso à lareira, olho o brasido, aqueço-me. É o calor da memória. Cerra-se-me à volta e fala longamente – que é que diz? Três cepos encarniçados, prestes a desmoronar-se, com breves chamas ainda, lampejando aqui e além. É o fogo do lar. Talvez devesse deitar-me, mas não tenho sono. Também não tenho nada para em vez de sono. Ideias? Sonhos? Lembranças? Frémito da memória, mas sem recordações para ela. Sinto como quem lembra, mas sem nada para lembrar.


ALEGRIA BREVE
Vergílio Ferreira