30 março 2005

Tocou-me para sempre

– Oiça – disse Granger tomando-lhe o braço e afastando com a mão livre os arbustos que se atravessavam no caminho. - O meu avô morreu quando eu era pequeno. Era escultor. Era um homem bom, cheio de ternura pelo mundo inteiro. Fez muito para acabar com os bairros miseráveis da nossa cidade. E fabricava-nos brinquedos. Durante toda a sua vida fez milhões de coisas. As suas mãos estavam sempre ocupadas. E, quando morreu, notei subitamente que não chorava por causa dele, mas por causa de tudo o que ele fazia. Chorei porque ele nunca mais as tornaria a fazer; nunca mais esculpiria um pedaço de madeira, nunca mais nos ensinaria a criar pombos no jardim, ou tocaria violino, ou nos contaria histórias. Fazia parte de nós e, quando morreu, todas essas coisas morreram com ele e não havia ninguém para o substituir. Era uma pessoa notável, um homem de valor. Nunca pude esquecer a sua morte. Frequentemente penso em todas as maravilhosas esculturas que não chegaram a existir porque ele também já não existia. Quantas belas palavras não foram ditas, quantos pombos as suas mãos não tocaram? Ele modelava o mundo. Ele mudara o mundo. O dia em que morreu foi o fim de milhares de acções generosas.

– Todos devemos deixar qualquer coisa atrás de nós, ao morrermos, dizia o meu avô. Um filho, um livro, um quadro, uma casa, uma parede ou um par de sapatos. Ou ainda um jardim plantado de flores. Qualquer coisa que a mão tocou e para onde irá a alma no instante da morte. E quando as pessoas olharem essa árvore ou essa flor que plantámos, nós estamos lá, sob os seus olhos. Pouco importa o que se faça, dizia ele, desde que ao tocar essa coisa, ela se transforme, do que era, à nossa semelhança. A diferença entre o homem que apara a relva e o verdadeiro jardineiro reside na maneira de tocar as coisas, dizia ele. O homem que corta a relva, desaparece; o jardineiro ficará presente toda a sua vida. Compreende? – Granger voltou-se para Montag.

– O meu avô morreu há muito tempo, mas se erguer a minha calote craniana, verá a marca profunda dos seus polegares. Tocou-me para sempre. Como lhe disse ele era escultor. " Odeio o status quo romano!", dizia-me. "Conserva sempre o espanto nos olhos. Vive como se fosses morrer dentro de dez segundos. Olha o mundo. Ele é mil vezes mais extraordinário que todos os sonhos que se podem fabricar em série nas fábricas. Nem propaganda, nem garantias, nem segurança, nunca um animal com esse nome existiu. E, se tivesse existido, seria parente desse preguiçoso que fica pendurado num ramo todo o dia, de cabeça para baixo, e consagra toda a sua vida a dormir. Ao diabo, sacode-me essa árvore e faz com que o preguiçoso bata com o rabo no chão!"



FAHRENHEIT 451
Ray Bradbury