Tocou-me para sempre
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– Todos devemos deixar qualquer coisa atrás de nós, ao morrermos, dizia o meu avô. Um filho, um livro, um quadro, uma casa, uma parede ou um par de sapatos. Ou ainda um jardim plantado de flores. Qualquer coisa que a mão tocou e para onde irá a alma no instante da morte. E quando as pessoas olharem essa árvore ou essa flor que plantámos, nós estamos lá, sob os seus olhos. Pouco importa o que se faça, dizia ele, desde que ao tocar essa coisa, ela se transforme, do que era, à nossa semelhança. A diferença entre o homem que apara a relva e o verdadeiro jardineiro reside na maneira de tocar as coisas, dizia ele. O homem que corta a relva, desaparece; o jardineiro ficará presente toda a sua vida. Compreende? – Granger voltou-se para Montag.
– O meu avô morreu há muito tempo, mas se erguer a minha calote craniana, verá a marca profunda dos seus polegares. Tocou-me para sempre. Como lhe disse ele era escultor. " Odeio o status quo romano!", dizia-me. "Conserva sempre o espanto nos olhos. Vive como se fosses morrer dentro de dez segundos. Olha o mundo. Ele é mil vezes mais extraordinário que todos os sonhos que se podem fabricar em série nas fábricas. Nem propaganda, nem garantias, nem segurança, nunca um animal com esse nome existiu. E, se tivesse existido, seria parente desse preguiçoso que fica pendurado num ramo todo o dia, de cabeça para baixo, e consagra toda a sua vida a dormir. Ao diabo, sacode-me essa árvore e faz com que o preguiçoso bata com o rabo no chão!"
FAHRENHEIT 451
Ray Bradbury
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