19 abril 2005

O Gabiru

No último andar do prédio mora o Gabiru, um solitário filósofo, esguio e triste como um enterro. Sabe tudo e nunca viveu. O que existe para lá do Hospital é para ele um grande mar ignorado e verde.

A realidade também não na entende: da vida só se fartou com sofreguidão desta fonte que transborda – o sonho. Tem o olhar estático e, metido na trapeira com ignóbeis calhamaços, deixa correr as suas ideias à solta como os rios. Assim, metafísico e pobre, de raras palavras, deitou-se a armar a Mouca, escárnio de soldados.

Nasceu para sonhar. Tem um suspiro de alívio quando se fecha na mansarda e exclama: – Vou idear!...– Sabe palavras, teorias, cartapácios, e nunca viu ao pé os rios, os montes, nem as árvores. Remexe em ideias profundas e nunca encontrou a realidade.


É assim feliz e triste. Posto à janela do cubículo espreita por cima do Hospital, sente correr o doirado jorro dos dias, cisma num portentoso sonho e ama. Entre as ideias que vai tecendo surge sempre aquela figura trágica, que todo o dia ri com os ladrões e os soldados.

Ignora a vida. Alguma coisa, porém, existe de imaterial – emoção violeta e oiro – que o rodeia, quase o toca e súbito foge magoada e aos soluços. E fio a fio vai tecendo e constrói a sua teoria.

Este mundo é talvez, como disse um filósofo desconhecido, uma gota caída dum oceano infinito de beleza.

O universo é o sonho dolorido de Deus.

Nada se perde. A alma, as ideias e as emoções, fazem parte da força que faz florir o céu e os humildes pomares ignorados.

O mundo é misterioso, cheio de gritos. A cada passo um túmulo donde renasce uma amálgama, uma poeira verde, azul, doirada, cova onde o Desconhecido remexe formas: o mar, as criaturas, as pedras, as tempestades, tudo vivo e a falar! O homem passa inconsciente, mas eu tremo de pavor.


OS POBRES
Raul Brandão