As palavras são de graça
Chamo-me Eva, que quer dizer vida, segundo um livro que a minha mãe consultou para escolher o meu nome. Nasci no quarto dos fundos de uma casa sombria e cresci entre móveis antigos, livros em latim e múmias humanas, mas isso não conseguiu tornar-me melancólica, porque vim ao mundo com um sopro de selva na memória. O meu pai, um índio de olhos amarelos, oriundo do lugar onde se juntavam cem rios, cheirava a bosque e nunca olhava o céu de frente, porque tinha sido criando debaixo da copa das árvores e a luz parecia-lhe indecente. Consuelo, minha mãe, passou a infância numa região encantada, onde durante séculos os aventureiros tem procurado a cidade do ouro puro que os conquistadores viram quando espreitavam os abismos da sua própria ambição. Ficou marcada pela paisagem e, de certa maneira, incutiu-me essa marca.Não tenho dentes de elefante nem escamas de serpente, pelo menos nenhuma que se veja. De certa forma, as estranhas circunstâncias da minha concepção tiveram consequências bem mais benéficas: deram-me uma saúde inalterável e essa rebeldia que demorou um pouco a manifestar-se mas que me salvou a vida de humilhações para a qual estava, sem dúvida, destinada.
Herdei do meu pai o sangue forte, porque aquele índio devia ser muito forte para resistir tantos dias ao veneno da serpente e em plena agonia dar prazer a uma mulher. Tudo o resto devo-o à minha mãe.
A minha mãe era uma criatura silenciosa, capaz de se dissimular entre os móveis, de se perder no desenho do tapete, de não fazer o menor alvoroço, como se não existisse; contudo na intimidade do quarto que compartilhávamos, transformava-se. Começava a falar do passado ou a contar as suas histórias e o quarto enchia-se de luz, desapareciam as paredes para dar lugar a paisagens incríveis, palácios a abarrotar de coisas nunca vistas, países longínquos inventados por ela ou subtraídos da biblioteca do patrão; colocava a meus pés todos os tesouros do Oriente, a lua e tudo o que havia para lá dela, reduzia-me ao tamanho de uma formiga para sentir o universo, desde o mais ínfimo, colocava-me asas para o ver desde o firmamento, dava-me uma cauda de peixe para conhecer o fundo do mar.
As palavras são de graça, dizia, e se apropriava delas, todas eram suas. Semeou na minha cabeça a ideia de que a realidade não e apenas o que se vê à superfície, tem também uma dimensão mágica e se alguém o deseja veemente é legítimo que a exagere e lhe dê cor para que a passagem por esta vida não seja tão aborrecida.
EVA LUNA
Isabel Allende
1987

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