03 junho 2005

As palavras são de graça

Chamo-me Eva, que quer dizer vida, segundo um livro que a minha mãe consultou para escolher o meu nome. Nasci no quarto dos fundos de uma casa sombria e cresci entre móveis antigos, livros em latim e múmias humanas, mas isso não conseguiu tornar-me melancólica, porque vim ao mundo com um sopro de selva na memória. O meu pai, um índio de olhos amarelos, oriundo do lugar onde se juntavam cem rios, cheirava a bosque e nunca olhava o céu de frente, porque tinha sido criando debaixo da copa das árvores e a luz parecia-lhe indecente. Consuelo, minha mãe, passou a infância numa região encantada, onde durante séculos os aventureiros tem procurado a cidade do ouro puro que os conquistadores viram quando espreitavam os abismos da sua própria ambição. Ficou marcada pela paisagem e, de certa maneira, incutiu-me essa marca.
Não tenho dentes de elefante nem escamas de serpente, pelo menos nenhuma que se veja. De certa forma, as estranhas circunstâncias da minha concepção tiveram consequências bem mais benéficas: deram-me uma saúde inalterável e essa rebeldia que demorou um pouco a manifestar-se mas que me salvou a vida de humilhações para a qual estava, sem dúvida, destinada.
Herdei do meu pai o sangue forte, porque aquele índio devia ser muito forte para resistir tantos dias ao veneno da serpente e em plena agonia dar prazer a uma mulher. Tudo o resto devo-o à minha mãe.
A minha mãe era uma criatura silenciosa, capaz de se dissimular entre os móveis, de se perder no desenho do tapete, de não fazer o menor alvoroço, como se não existisse; contudo na intimidade do quarto que compartilhávamos, transformava-se. Começava a falar do passado ou a contar as suas histórias e o quarto enchia-se de luz, desapareciam as paredes para dar lugar a paisagens incríveis, palácios a abarrotar de coisas nunca vistas, países longínquos inventados por ela ou subtraídos da biblioteca do patrão; colocava a meus pés todos os tesouros do Oriente, a lua e tudo o que havia para lá dela, reduzia-me ao tamanho de uma formiga para sentir o universo, desde o mais ínfimo, colocava-me asas para o ver desde o firmamento, dava-me uma cauda de peixe para conhecer o fundo do mar.
As palavras são de graça, dizia, e se apropriava delas, todas eram suas. Semeou na minha cabeça a ideia de que a realidade não e apenas o que se vê à superfície, tem também uma dimensão mágica e se alguém o deseja veemente é legítimo que a exagere e lhe dê cor para que a passagem por esta vida não seja tão aborrecida.


EVA LUNA
Isabel Allende
1987