01 julho 2005

Desbotados pelo tempo


As badaladas longínquas do relógio da sala despertaram-me sobressaltada. Já eram quatro da tarde e as cortinas de algodão grosso impediam a entrada de luz. As sombras projectavam-se nas paredes e no tecto do quarto. Percorri com o olhar aquelas paredes despidas. Só uma era adornada pela figura, em gesso, de um Cristo de rosto dorido e sulcado por pequenos fios de sangue. Uma mísula de madeira servia de suporte a uma vela acesa, cujo brilho cintilante se reflectia na imagem. Sobre a mesa-de-cabeceira havia uma coroa de flores de laranjeira e um missal com capa de nácar; no chão, uns sapatos de cetim.

Levantei-me, fui até à janela e afastei a cortina. Uma franja de luz mortiça resvalou sobre a cadeira onde repousavam o vestido de noiva e o véu de tule, atingidos assim pelos dardos furtivos do sol. Olhei pela janela. O céu do entardecer, diáfano e tranquilo, dava a sensação de uma calma absoluta. Em contrapartida, o meu espírito era um remoinho agitado por recordações melancólicas. Corri a cortina.
– Amanhã. Esta é a minha última noite em casa – murmurei, exalando um suspiro profundo.

O baú forrado com chapa de latão repousava a um canto. Abri-o, vasculhei no seu interior e retirei da penumbra uma pequena caixa de veludo cheia de retratos antigos, fotografias de família já amarelecidas. Fixei o olhar no retrato dos meus avós maternos, Heliodoro e Loreto. Ela exibia um vestido com franjas e lantejoulas e, a adornar-lhe a fronte, um diadema com pedras incrustadas. Os seus lábios mostravam um sorriso aberto e o olhar reflectia a vitalidade pujante da juventude. A seu lado, metido num sóbrio fato cinzento, o meu avô parecia uma sombra pálida e vacilante. Entre os dois, estava sentada a minha bisavó María, com um vestido comprido e austero e uma cabeleira de neve que contrastava com a frescura nacarada do seu rosto e o sorriso dos seus olhos. No seu regaço repousava María Dolores, a minha mãe, com um vestido da brancura de um cisne e uma roca na mão. Sorria com ar lânguido e olhos tímidos. Ao observá-los, percebi o vínculo que me unia àqueles seres desbotados pelo tempo.


BODA MEXICANA
Sandra Sabanero

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Para mim também é uma descoberta recente até porque este é o seu primeiro romance publicado.
Se quiseres ler mais um bocadinho encontras o 1ºcapítulo do livro no site do Círculo de Leitores. Vale a pena!

sexta-feira, julho 01, 2005  

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