06 julho 2005

O passado andou atrás de mim


Este Verão correu muito depressa e o passado andou atrás de mim. Deu-me para recordar. Vivemos no interior de um tempo, diluído ou denso, que não nos abandona. Podemos fugir; mas não nos podemos esconder. E aquilo em que acreditamos faz a magia do que passou. Agora, com esta idade, aprendi que as coisas estão por dentro, e que adquirimos uma consciência infeliz perante as nossas próprias descobertas. Também aprendi que devemos amar o que não tem preço.

Finalmente estava só, finalmente não sentia o peso dela, nem a necessidade de fingir afeição. Esperei, anos e anos, o dia em que deixaria de ser forçado a viver na aflitiva desolação da sua companhia. Sou um homem a quem falhou muita coisa, sobretudo a coragem. Porém, nunca se me desvaneceu a lucidez de o reconhecer; mais: de me aceitar tal qual sou. O perdedor encontra na derrota uma secreta volúpia.

Durante muito tempo dediquei-me, através da alquimia das frustrações, a mitificar um passado, para mim a melhor fonte de felicidade. Inscrevia-me nessa lista enorme de pessoas que temem crescer, mas não o admitem. O que atenuou o meu desespero foi o poderoso desafio de viver além da conta e o desejo de ser único. Os homens estão divididos em mutilados e vis. Pertenço à primeira categoria, e faço uma tangente com a segunda. Nada espero; vivo preparado para tudo.

Estou marcado pelo tempo, pelas desilusões, pelo medo e pelas perdas. Há algo exterior a nós que somos obrigados a servir. Na minha idade já devia ter cuidado. Não com o corpo: sempre dele abusei; com aquilo que digo e, até, com aquilo que penso. Embora, presentemente, possa dar a minha versão dos factos sem ser incomodado pelo remorso. Às vezes sou eu; outras, exageradamente eu. A idade permite e desculpa os excessos, e torna desprezível qualquer forma de precaução. Mas com idade ocorre, também, todos os dias, uma indecisão nova e perturbadora, um problema e uma dúvida.

«Os homens que estão prontos para morrer é porque nunca estiveram prontos para viver», disseste, pouco tempo antes de te ires embora.

Lá estão as sombras, lá estão os gritos, lá estão os rostos. Impõem-se-me de uma forma quase dolorosa; e não consigo suprimi-los.


NO INTERIOR DA TUA AUSÊNCIA
Baptista-Bastos
2002