05 julho 2005

Estrangeira na minha própria terra


No meu caso, a infelicidade natural da infância era agravada por uma quantidade de complexos tão emaranhados que já nem consigo enumerá-los, mas felizmente não me deixaram feridas que o tempo não curasse. Uma vez ouvi dizer a uma famosa escritora afro-americana que desde criança se tinha sentido estranha na sua família e na sua terra; acrescentou que é o que sentem quase todos os escritores, mesmo que nunca saiam da sua cidade natal. É uma condição inerente a este trabalho, garantiu; sem o desassossego de sentir-se diferente não haveria necessidade de escrever. A escrita, ao fim e ao cabo, é uma tentativa de compreender as circunstâncias próprias e clarificar a confusão da existência, inquietudes que não atormentam as pessoas normais, só os inconformistas crónicos, muitos dos quais acabam convertidos em escritores depois de terem fracassado noutros ofícios. Esta teoria tirou-me um peso de cima: não sou um monstro, há outros como eu. Nunca vesti em parte alguma, nem na família, a classe social ou a religião que me tocaram em sorte; não pertenci aos bandos que andavam de bicicleta pela rua; os primos não me incluíam nas suas brincadeiras; era a rapariguinha menos popular do colégio e depois fui durante muito tempo a que menos dançava nas festas, mais por ser tímida do que por ser feia, prefiro supor. Fechava-me na capa do orgulho, fingindo que não me importava, mas teria vendido a alma ao diabo para ser do grupo, se por acaso Satanás se apresentasse com proposta tão atractiva. A raiz do meu problema foi sempre a mesma: incapacidade de aceitar o que a outros parece natural e uma tendência irresistível para emitir opiniões que ninguém deseja ouvir, o que espantou alguns potenciais pretendentes. (Não quero ser convencida, nunca foram muitos).
Mais tarde, durante os meus anos de jornalista, a curiosidade e o atrevimento tiveram algumas vantagens. Pela primeira vez fiz então parte de uma comunidade, tinha carta de alforria para fazer perguntas indiscretas e divulgar as minhas ideias, mas isso acabou bruscamente com o golpe militar de 1973, que desencadeou forças incontroláveis. Da noite para o dia vi-me estrangeira na minha própria terra, até que por fim tive de partir, porque não podia viver e criar os meus filhos num país onde imperava o medo e onde não havia lugar para dissidentes como eu. Naquele tempo a curiosidade e o atrevimento estavam proibidos por decreto.
Fora do Chile esperei durante anos que se reinstalasse a democracia para regressar, mas quando isso aconteceu não o fiz, porque estava casada com um norte-americano, a viver perto de São Francisco. Não voltei a residir no Chile, onde na verdade passei menos de metade da minha vida, embora o visite com frequência; mas para responder à pergunta daquele desconhecido sobre a nostalgia, devo limitar-me quase exclusivamente aos anos que lá vivi. E para o fazer devo ter por referência a minha família, porque pátria e tribo confundem-se na minha cabeça.


O MEU PAÍS INVENTADO
Isabel Allende

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Podia ser qualquer umas dessas hipóteses, mas não, é uma foto da Isabel Allende tirada no Chile em l973.

terça-feira, julho 05, 2005  

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