13 julho 2005

A Salvação de Wang-Fô


Ling não nascera para correr mundo ao lado de um velho que se apoderava da aurora e captava o crepúsculo. Seu pai era mercador de ouro; sua mãe era filha única de um negociante de jade, que lhe deixara os bens amaldiçoando-a por ela não ser rapaz. Ling crescera numa casa donde a riqueza eliminava o acaso. Aquela existência cuidadosamente calafetada tornara-o tímido: tinha medo dos insectos, do trovão e do rosto dos mortos. Ao completar quinze anos, seu pai escolheu-lhe esposa e tomou-a entre as mais belas, pois a ideia de felicidade que oferecia ao filho consolava-o de haver atingido a idade em que a noite serve para dormir. A esposa de Ling era frágil como um caniço, infantil como o leite, doce como a saliva, salgada como as lágrimas.

Consumada a boda, os pais de Ling levaram a discrição ao ponto de morrerem, e o filho ficou só na casa pintada da cinábrio, na companhia da sua jovem mulher, que sorria constantemente, e de uma ameixeira que todas as primaveras se cobria de flores cor-de-rosa.
Ling amou aquela mulher de coração límpido como se ama um espelho que não embaciasse, um talismã que protegesse para sempre. Frequentava ascasa de chá para obedecer à moda e era moderadamente generoso para os acrobatas e bailarinas.

Certa noite, numa taberna, teve Wang-Fô por companheiro de mesa. O velho bebera para ficar em condições de pintar mais capazmente um bêbado; a cabeça pendia-lhe de lado, como se procurasse mediar a distância que separava a sua mão da chávena. A aguardente de arroz soltava a língua daquele artesão taciturno, e nessa noite Wang falava como se o silêncio fosse um muro e as palavras cores destinadas a cobri-lo. Graças a ele, Ling conheceu a beleza das caras dos bebedores esbatidas pelo vapor das bebidas quentes, o moreno esplendor das carnes desigualmente acariciadas pela língua das chamas e o delicado rosicler das nódoas de vinho que salpicavam as toalhas como pétalas murchas. Uma rabanada de vento rompeu a janela; a tempestade entrou pela sala. Wangf-Fô esgueirou-se para dar a contemplar a Ling o lívido zebrado do relâmpago, e Ling, maravilhado, perdeu o medo à trovada.



CONTOS ORIENTAIS
Marguerite Yourcenar