28 setembro 2005

Uma dor diabólica

Há qualquer coisa de belo na alegria, na ausência de dor, nesses dias suportáveis e amainados em que nem a dor nem o prazer ousam gritar, em que tudo sussurra e anda de mansinho em bicos de pés. Mas comigo, infelizmente, acontece que é precisamente essa alegria que eu menos tolero; após algum tempo ela torna-se insuportável, de odiosa e repugnante, forçando-me a fugir, de desespero, para outras temperaturas, porventura trilhando caminhos de luxúria, mas se necessário for também de sofrimento. Quando passo algum tempo sem alegrias nem penas, respirando a sofribilidade morna e insípida dos chamados dias bons, nasce na minha alma de criança um tormento, uma revolta tão inflamada, que atiro a enferrujada lira da gratidão ao beatífico rosto do deus meio adormecido da satisfação, e preferia uma dor francamente diabólica fervilhando dentro de mim a esta aprazível temperatura ambiente. Irrompe então em mim uma feroz avidez de sensações fortes, uma raiva contra esta vida descolorada, banal, estandardizada e esterilizada, e um avassalador desejo de arranjar qualquer coisa, um armazém ou uma catedral, sei lá, ou eu próprio, pôr-me a fazer disparates arrojados, arrancar as perucas de uns tantos ídolos venerados, proporcionar a uns tantos rapazinhos estudantes em revolta o ansiado salto ate Hamburgo, seduzir uma miúda ou torcer o pescoço a uns tantos representantes da ordem universal burguesa. É que não havia coisa que eu mais detestasse, abominasse e execrasse no mais íntimo do meu ser: essa beatitude, essa saúde, esse bem-estar, esse acalentado optimismo do burguês, essa cultura farta e próspera do medíocre, do normal do mediado.


O LOBO DAS ESTEPES
Hermann Hesse

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

O Lobon das Estepes é um livro muito bom do Hesse. No entanto, para mim, a obra prima dele é o Narciso E Goldmundo, muito acima do Lobo das Estepes, do Jogo das Contas e Vidro, do Peter Carmenzind(o mais fraco dos que li) e do Siddartha. Gostei muito do Lobo das Estepes, mas acho que aí o Hesse nãp chegou a alcançar o seu melhor. Há tempos ouvi o Alfredo Saramago, o gastrónomo, a dizer que tinha dezenas de Lobo das Estepes em casa e que era o livro que oferecia a toda a gente que se cruzava com ele, para depois lhes perguntar e ver as reacções e ele depois contava algumas bem curiosas, das pessoas que adoraram o livro às pessoas que o odiaram e o insultaram, etc.

Relembro ainda uma coisa que me marcou no Lobo das Estepes que foi a parte sobre o riso e a sua descoberta. E concordo com o Hesse que é das coisas mais difíceis da vida.

E Juan Rulfo já leste. Há Rulfo agora no porco.

quinta-feira, setembro 29, 2005  
Anonymous Anónimo said...

Ena, o grande Hesse... é um dos meus preferidos, embora, estou como o Alquimista, prefira outras coisas dele. Não gostei muito do Lobo que achei demasiado sombrio. O meu preferido é O Jogo das Contas de Vidro, mas acho que há um fundo positivo em Hesse que não vislumbro no Lobo. E, seguind a mesma família literária, já leste o Grande Amin Malouf?
Mefistófeles (www.tapornumporco.blogspot.com)

terça-feira, outubro 11, 2005  

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