09 janeiro 2006

A sede de infinito














Sim, eles dois eram menos moços, mas mais unidos. Tinham um bote a motor que Forza aproximava da beira. Helena não sabia nadar, mas agitava-se na água e acenava quando o via. Ele vinha em direcção a ela, ela avançava até atingir a água pelo nível dos ombros, e ele em cima do bote. Roncava o bote, era como se a viesse buscar, e depois passava em tangente e atingia o largo. Ficava de costas. Ela gritava
— “Jaime, Jaime, estou aqui!”
De novo ele fazia a curva, traçava a tangente, ela saltava, uma onda pequena bastava para a engolir, ela de braços esticados, gritando aqui, aqui, ele se ia de novo, o motor resfolegava na água a uns metros. Não chegava a fazê-la entrar. Regressava no bote, chamava-a para ela puxar o bote. Ela corria à beira, empurrava o bote para fora, saltava e compunha o cabelo, como se naquela simulação de vai não vai no pequeno barco existisse um divertimento exaltante. Era uma bela mulher, despida lembrava um pombo, como outras lembram uma rã e outras uma baleia. Não era só a voz que lembrava um pombo, a chamar pelo barco, mas era também a perna, o seio, alguma coisa estava espalhada por ela que pertencia à família das columbinas. Talvez o cabelo vermelho, talvez a pele leitosa.
Os dois, ele e ela triunfantes, entendidos. A união deles era um triunfo. Ele com o bote, com ela e com a praia junto à casa, a cicatriz, era a perfeição do triunfo na vida. Essa sensação, por mais ingredientes desusados que tivesse, era tão forte que se transmitia a todos os elementos circundantes. A areia onde estávamos deitados até ela mesma seria uma emanação desse triunfo se o noivo não estivesse nostálgico vendo aquela alegria. Talvez Evita fosse injusta e o noivo mantivesse a mesma sede de resolução das coisas inextrincáveis, como antigamente tinha com as várias incógnitas e com o cálculo infinitesimal. Para quem tem a sede de infinito, é possível que tanto se comova com a dispersão das galáxias como com a rigidez do mármore. Helena deveria despertar no noivo, com aquela voz de pomba, a imagem do feminino absoluto, e daí até ao amuo com a sua realidade onde estava eu, Evita, ia um passo — disse Eva Lopo. O noivo não ria nem para mim nem para o mar, só conseguia rir para o capitão. O noivo pegou no bote, amarrou o bote, ficámos na praia amarrando tudo isso, para que eles pudessem ir sós até à entrada de casa. Ele adiante com a toalha ao ombro, em grandes passadas, ela mais atrás, com um saco. Ela sentou-se na areia para calçar as sandálias, ele já ia no alto dum pequeno morro. Virou-se, assobiou por ela com o tal assobio tremido, de ordem e chamamento. Ela pegou no saco e correu, escorregando e caindo. Aproximou-se da estrada e dele também. A união deles não se revestia do modelo que Evita havia colhido nas salas de cinema de Lisboa com imensa fita francesa, com casais cheios de distúrbio, e no entanto, surpreendentemente, Helena e Forza tinham uma alegria doméstica triunfante, tudo neles triunfava como um arco erigido à porta duma casa. Entraram pela portinha de ferro, os mainatos vieram, Helena acenou da porta com o cabelo molha-do, a fieira dos dentes luziu e pareceu, na atmosfera do meio-dia, um reclame ao elixir estival da felicidade. Entraram na porta de casa, fecharam-na, no ar havia harmonia — como um pêndulo bom vai, vem, promete. Lembro-me.


A COSTA DOS MURMÚRIOS
Lídia Jorge

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Um dos espaços que mais merece estar no Plagiadíssimo.
Passa por lá e vê se gostas.
Um abraço

segunda-feira, janeiro 09, 2006  

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