30 dezembro 2005

De repente...


















De repente, num instante fugaz, os fogos de artifício anunciam que o ano novo está presente e o ano velho ficou para trás.

De repente, os homens esquecem o passado, lembram-se do futuro venturoso e de como é bom viver. .



A todos votos de um Feliz Ano Novo!!!



28 dezembro 2005

Na vasta suspensão do tempo

- Que é que tu esperas do cão? Viveu, tem de morrer.

Não havia ali, porém uma acusação. Havia só o reconhecimento de uma evidência serena. Mas justamente para mim o que era evidente não era a morte, era a vida. Como podia o cão morrer? Como podia morrer a sua pessoa?

Caíra um nevão mais forte e Mondego, com o frio, mal saia da casota. Espreitava ao buraco, não comia e eu não tinha já dúvida de que ele iria morrer. Assim, pelas manhãs, eu corria logo ao quintal, como se a vida do cão dependesse da minha pressa.

- Morre mas leva tempo – disse um dia o António.

Na noite de Natal fomos à missa do galo. Era uma noite perfeita, como a de agora, com uma lua limpa no céu, estrelas vivas coroando a terra. A neve brilhava na montanha, os sinos dobravam para a noite. De nossa casa, só o meu pai não ia à missa. A mulher do António segurava um lampião para ir decifrando os poços de lama que os transeuntes abriam na neve e a lua nem sempre iluminava. Ao longe, nos caminhos da serra, outras luzes brilhavam, no rasto da esperança, convergindo para a igreja.

Subitamente, porém, quando transpúnhamos o portão, tive o choque de um alarme. A casota do cão ficava a um canto do quintal, perto do alpendre onde se arrumavam os bois. Admiti bruscamente que o cão tivesse morrido. E abandonando o grupo, fui sozinho até ao fundo do jardim. À luz da lua, espreitei para a casota; chamei o cão, Mondego não respondeu. Meti a mão dentro – o cão não estava. Presumi, absurdamente, que tivesse rebentado a corrente, se tivesse aninhado no alpendre. Fui para lá, mergulhei para um lado e outro no escuro, chamei: Mondego! Nada. Mas eis que, ao voltar-me para sair, eu vi o cão enfim: suspenso de uma trave, enforcado no arame, Mondego, recortava-se contra o céu, iluminado da lua e de estrelas. Dominei-me, não gritei. E corri para o grupo, que voltava atrás a procurar-me. Desculpei-me como pude e segui para a igreja, chorando duramente: quando Cristo nascia entre cânticos e luzes, Mondego balançava de uma trave o seu corpo leproso, banhado de luar…

No dia seguinte quiseram iludir-me: o cão teria aparecido morto à porta da casota. Não reagi. Levantei-me apenas e fui eu enterrar o animal, para que fosse amortalhado com ternura, para que a última voz da terra a falar-lhe fosse uma voz de aliança.


Já não vejo a lua, que subiu mais no céu. Mas a face da montanha, voltada para mim, ilumina-se toda, branca e solene. E nesta imóvel radiação do silêncio, nesta vasta suspensão do tempo, a morte do Mondego irmana-se à de meu pai, dissolve-se num imenso apaziguamento. Como um olhar gravado de cansaço, a lua vela o ossuário da terra, a profunda surdez me submerge…



APARIÇÃO
Vergílio Ferreira

23 dezembro 2005

Um palmo de sonho

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.


HISTÓRIA ANTIGA
Miguel Torga

19 dezembro 2005

Há dias assim!

Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos. É o povo fazendo sua língua. Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que vingará plenamente um dia."P'ra caralho", por exemplo. Qual expressão traduz melhor a idéia de muita quantidade do que "P'ra caralho"? "P'ra caralho" tende ao infinito, é quase uma expressão matemática. A Via-Láctea tem estrelas pra caralho, o Sol é quente pra caralho, o universo é antigo pra caralho, eu gosto de cerveja pra caralho, entende?

No género do "Pra caralho", mas, no caso, expressando a mais absoluta negação, está o famoso "Nem fodendo!". O "Não, não e não!" e tampouco o nada eficaz e já sem nenhuma credibilidade "Não, absolutamente não!" o substituem. O "Nem fodendo" é irretorquível, e liquida o assunto. Te libera, com a consciência tranquila, para outras atividades de maior interesse em sua vida. Aquele filho pentelho de 17 anos te atormenta pedindo o carro pra ir surfar no litoral? Não perca tempo nem paciência. Solte logo um definitivo "Marquinhos, presta atenção, filho querido, NEM FODENDO!". O impertinente se manca na hora e vai pro Shopping se encontrar com a turma numa boa e você fecha os olhos e volta a curtir o CD do Lupicínio.

Por sua vez, o "porra nenhuma!" atendeu tão plenamente as situações onde nosso ego exigia não só a definição de uma negação, mas também o justo escárnio contra descarados blefes, que hoje é totalmente impossível imaginar que possamos viver sem ele em nosso quotidiano profissional. Como comentar a bravata daquele chefe idiota senão com um "é PhD porra nenhuma!", ou "ele redigiu aquele relatório sozinho porra nenhuma!". O "porra nenhuma", como vocês podem ver, nos provê sensações de incrível bem estar interior. É como se estivéssemos fazendo a tardia e justa denúncia pública de um canalha. São dessa mesma gênese os clássicos "aspone", "chepone", "repone" e, mais recentemente, o "prepone" - presidente de porra nenhuma.

Há outros palavrões igualmente clássicos. Pense na sonoridade de um "Puta-que-pariu!", ou seu correlato "Puta-que-o-pariu!", falados assim, cadenciadamente, sílaba por ílaba... Diante de uma notícia irritante qualquer um "puta-que-o-pariu!" dito assim te coloca outra vez em seu eixo. Seus neurônios têm o devido tempo e clima para se reorganizar e sacar a atitude que lhe permitirá dar um merecido troco ou o safar de maiores dores de cabeça.

E o que dizer de nosso famoso "vai tomar no cu!"? E sua maravilhosa e reforçadora derivação "vai tomar no olho do seu cu!". Você já imaginou o bem que alguém faz a si próprio e aos seus quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha de seu interlocutor e solta: "Chega! Vai tomar no olho do seu cu!". Pronto, você retomou as rédeas de sua vida, sua auto-estima. Desabotoa a camisa e saia à rua, vento batendo na face, olhar firme, cabeça erguida, um delicioso sorriso de vitória e renovado amor-íntimo nos lábios.

E seria tremendamente injusto não registrar aqui a expressão de maior poder de definição do Português Vulgar: "Fodeu!". E sua derivação mais avassaladora ainda: Fodeu de vez!". Você conhece definição mais exacta, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo imaginável de ameaçadora complicação? Expressão, inclusive, que uma vez proferida insere seu autor em todo um providencial contexto interior de alerta e auto-defesa. Algo assim como quando você está dirigindo bêbado, sem documentos do carro e sem carteira de habilitação e ouve uma sirene de polícia atrás de você mandando você parar: O que você fala? "Fodeu de vez!".

Sem contar que o nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de "foda-se!" que ela fala. Existe algo mais libertário do que o conceito do "foda-se!"? O "foda-se!" aumenta minha auto-estima, me torna uma pessoa melhor. Reorganiza as coisas. Me liberta. "Não quer sair comigo?Então foda-se!". "Vai querer decidir essa merda sozinho(a) mesmo? Então foda-se!".

O direito ao "foda-se!" deveria estar assegurado na Constituição Federal. Liberdade, igualdade, fraternidade e foda-se.


NOSSO VOCABULÁRIO
Millôr Fernandes
(humorista, teatrólogo e jornalista carioca)

09 dezembro 2005

The dreamer

Imagine there's no heaven,
It's easy if you try,
No hell below us,
Above us only sky,
Imagine all the people
living for today...

Imagine there's no countries,
It isnt hard to do,
Nothing to kill or die for,
No religion too,
Imagine all the people
living life in peace...

Imagine no possesions,
I wonder if you can,
No need for greed or hunger,
A brotherhood of man,
Imagine all the people
Sharing all the world...

You may say Im a dreamer,
but Im not the only one,
I hope some day you'll join us,
And the world will live as one.


IMAGINE
John Lennon

07 dezembro 2005

O carro malhado















Certa ocasião, em Luanda, um policia mandou parar o carro em que eu seguia, em trabalho de reportagem, com um motorista e um fotógrafo. Era um homenzinho magro, bigode fino, olhos assustados, certamente com vários filhos, de várias mulheres, para sustentar. Pediu os documentos, estudou-os com atenção, e não encontrando qualquer irrregulariedade pôs-se tristemente a cofiar o bigode. Por fim deu a volta ao carro, apalpando-o como um médico a analisar um paciente. Rgressou mais triste, ainda mais magro, com o fino bigode caído sobre os lábios. Mas eis que uma súbita inspiração lhe iluminou o olhar. Voltou a pedir o livrete e apontando para a carroçaria, corrigida com massa devido a um acidente, anunciou em triunfo: - Aqui no livrete, diz que este veículo é branco e eu estou a ver que ele é malhado! O senhores queiram fazer o favor de abandonar a viatura. Naquele momento todo ele era polícia. saímos e ficámos os três, parados, debaixo do sol, a olhar para aquela autoridade. O motorista tentou argumentar: - Camarada, sem ofensa, malhadas são as vacas. Então o homem mudou de tom, e de postura, e de repente já não era polícia e sim um ladrão sem escolha, magríssimo, um pequeno larápio miserável, roubando para matar a fome: - Está muito calor - murmurou -, eu agradecia uma gasosa. Dei-lhe o dinheiro, e ele guardou-o no bolso, num gesto ansioso, como se tivesse receio que eu voltasse atrás. Depois endireitou-se, fez continência, e autorizou-nos a reentrar no carro: - Está tudo muito certo - disse -, mas que o veículo é malhado, lá isso é.


FRONTEIRAS PERDIDAS
José Eduardo Agualusa

02 dezembro 2005

Um comboio de corda

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.



AUTOPSICOGRAFIA
Fernando Pessoa
in Obra Poética