26 janeiro 2006

A bela e o monstro


















A sua história com Tom desenhara-se como uma teia de contos de fadas. Contos de fadas mais ou menos transfigurados mas ainda identificáveis: o patinho feio que se transforma em cisne: a Cinderela e o príncipe. A jovem apagada que se apaixona pelo professor na faculdade, a mulher bonita que é companheira do escritor.
E depois a bela e o monstro... A mulher solitária e o homem mais velho, dominador, que tinha depressões terríveis e a destruía lentamente. O homem que à medida que se aproximava do centro, no mundo hermético dos seus livros, se ia transformando num monstro.
E ela matara o monstro.
Ou talvez essa fosse só outra maneira de contar a história. Era possível, tudo era possível.
Matara-o, talvez, para ser livre.
Porque as pessoas como Patrícia não matavam por razões fúteis como dinheiro, amor ou vingança.
Fora talvez aquele desejo de libertar-se, de perder-se no mundo, sentimento oceânico, fundir-se com o mundo, deixar diluir a sua identidade. Deixar de ser ela mesma. Ser outra pessoa qualquer, noutro lugar qualquer. Ser muitas pessoas em muitos lugares diferentes.
E, durante dois anos, vagueara de facto, com o dinheiro de Tom, por lugares onde nunca tinha estado com ele. Para descobrir que Londres não é a de John Dickson Carr e Veneza não é a de Henry James ou Tom Ripley. E sentira a falta de Tom de uma forma brutal, procurara-o noutros homens, de uma forma indistinta.
Quando o conhecera sentira isso também. Que o intuíra sempre nos namorados que tivera. Que desejara sempre o homem que escrevera aqueles livros incompreensíveis que tinham formado o seu mundo desde criança.
Depois de o matar acontecera de novo, continuara a procurá-lo nos homens com quem se relacionava. E que eram quase irreais, estranhamente parecidos uns com os outros, ultimamente chegara a uma fase nebulosa em que não distinguia as pessoas umas das outras.
Ao fim de dois anos resolvera voltar para a casa de Tom. Onde nunca estivera antes.
A casa com dupla personalidade. Cinzenta e nostálgica, com árvores nuas e arbustos que floriam no Inverno. E do outro lado uma parede áspera, esverdeada, sobre as falésias, o mar lá em baixo. O mar que entrava nas grutas que ficavam debaixo da casa, quando a maré subia. Tom falara-lhe nisso uma ou duas vezes, na velha casa onde vivera quando era menino, a casa que tinha água nas entranhas.
Falava muito pouco de si mesmo, ela não sabia nada dos seus pais, da sua vida de criança, mas aprendera com ele que nos livros é sempre o menino que escreve, o menino condenado a elaborar interminavelmente as suas primeiras histórias. Patrícia não questionara nunca aquilo que ele lhe ensinava, como se ela e tudo o que existia fizessem parte de um mundo criado por ele. Mas como, depois de outros homens, só com ele descobrira a sua sexualidade, o seu corpo, também fora com ele que aprendera a ver a realidade, e já não saberia vê-la de outra maneira.
Chegara à casa numa sombria tarde de Fevereiro. Vagueara pelo jardim, entre os arcos em ruínas e as plantas humedecidas pelo nevoeiro e depois entrara no átrio frio e impecavelmente limpo. Vagueara pelos corredores e pelas escadas, evitando os espelhos, sentindo com algum horror que o lugar lhe era familiar. Era quase como reler um livro que lera em criança e no qual encontrara algo de si mesma. Sempre fora demasiado narcisista para se interessar pelos livros onde não havia nada de si.
A sensação tornou-se mais forte ao entrar na biblioteca. Era uma divisão escura, as paredes inteiramente escondidas pelos livros. Havia uma lareira e uma secretária a um canto. Pareceu-lhe reconhecer aquela penumbra, aquele leve mistério que emanava da poeira dos livros, o pequeno bar junto à lareira. Depois percebeu. Conhecia-os dos livros de Tom.
Nessa noite dormira no quarto de Tom, na sua cama. Ao acordar sentira-se bem, pensara que talvez fosse mais simples assim, não sentir a sua ausência mas estar no seu lugar. Levantara-se e fora até à varanda, pequena e suspensa sobre o mar e deixara-se ficar ali, respirando o ar frio e tentando imaginar a paisagem escondida pelo nevoeiro.
– E passou-se um mês – disse Patrícia baixinho, enquanto fechava a porta do automóvel e deitava um olhar assustado à sombra negra da casa que se desenhava na escuridão.
Manhãs na cama, tardes cinzentas na biblioteca e à noite o barzinho na aldeia, embriagar-se quase até ao fim, voltar e dormir durante muito tempo.
Mas naquela noite não subiu para o quarto. Entrou na biblioteca, com passos vacilantes.
E, sem saber bem o que fazia, escreveu o primeiro conto fantástico.


A ÚLTIMA HISTÓRIA
Ana Teresa Pereira