20 outubro 2005

Canção de embalar















O meu menino é d'oiro
É d'oiro fino
Não façam caso que é pequenino
O meu menino é d'oiro
D'oiro fagueiro
Hei-de levá-lo no meu veleiro.

Venham aves do céu
Pousar de mansinho
Por sobre os ombros do meu menino
Do meu menino, do meu menino
Venham, comigo venham
Que eu não vou só
Levo o menino no meu trenó.


Quantos sonhos ligeiros
p'ra teu sossego
Menino avaro não tenhas medo
Onde fores no teu sonho
Quero ir contigo
Menino de oiro sou teu amigo

Venham altas montanhas
Ventos do mar
Que o meu menino
Nasceu p'r'amar
Venha comigo venham
Que eu não vou só

Levo o menino no meu trenó.

O meu menino é d'oiro
É d'oiro é de oiro fino....


in PRIMEIRAS CANÇÕES
Zeca Afonso


À minha amiga Carla, que hoje perdeu o bem mais precioso que uma mãe pode ter. Deus tem um lugar especial no seu coração para a tua pequenina.

O rei dos animais
















Saiu o leão a fazer sua pesquisa estatística, para verificar se ainda era o Rei das Selvas. Os tempos tinham mudado muito, as condições do progresso alterado a psicologia e os métodos de combate das feras, as relações de respeito entre os animais já não eram as mesmas, de modo que seria bom indagar. Não que restasse ao Leão qualquer dúvida quanto à sua realeza. Mas assegurar-se é uma das constantes do espírito humano, e, por extensão, do espírito animal. Ouvir da boca dos outros a consagração do nosso valor, saber o sabido, quando ele nos é favorável, eis um prazer dos deuses. Assim o Leão encontrou o Macaco e perguntou: "Hei, você aí, macaco – quem é o rei dos animais?" O Macaco, surpreendido pelo rugir indagatório, deu um salto de pavor e, quando respondeu, já estava no mais alto galho da mais alta árvore da floresta: "Claro que é você, Leão, claro que é você!".

Satisfeito, o Leão continuou pela floresta e perguntou ao papagaio: "Currupaco, papagaio. Quem é, segundo seu conceito, o Senhor da Floresta, não é o Leão?" E como aos papagaios não é dado o dom de improvisar, mas apenas o de repetir, lá repetiu o papagaio: "Currupaco... não é o Leão? Não é o Leão? Currupaco, não é o Leão?".

Cheio de si, prosseguiu o Leão pela floresta em busca de novas afirmações de sua personalidade. Encontrou a coruja e perguntou: "Coruja, não sou eu o maioral da mata?" "Sim, és tu", disse a coruja. Mas disse de sábia, não de crente. E lá se foi o Leão, mais firme no passo, mais alto de cabeça. Encontrou o tigre. "Tigre, - disse em voz de estentor -eu sou o rei da floresta. Certo?" O tigre rugiu, hesitou, tentou não responder, mas sentiu o barulho do olhar do Leão fixo em si, e disse, rugindo contrafeito: "Sim". E rugiu ainda mais mal-humorado e já arrependido, quando o leão se afastou.

Três quilómetros adiante, numa grande clareira, o Leão encontrou o elefante. Perguntou: "Elefante, quem manda na floresta, quem é Rei, Imperador, Presidente da República, dono e senhor de árvores e de seres, dentro da mata?" O elefante pegou-o pela tromba, deu três voltas com ele pelo ar, atirou-o contra o tronco de uma árvore e desapareceu floresta adentro. O Leão caiu no chão, tonto e ensanguentado, levantou-se lambendo uma das patas, e murmurou: "Que diabo, só porque não sabia a resposta não era preciso ficar tão zangado".

M O R A L: CADA UM TIRA DOS ACONTECIMENTOS A CONCLUSÃO QUE BEM ENTENDE


Fábulas Fabulosas
Millôr Fernandes

19 outubro 2005

Das Alegorias


















Muitos se queixam de que as palavras dos sábios sejam sempre alegorias, porém inaplicáveis na vida diária, e isto é o único que possuímos. Quando o sábio diz: "Anda para ali", não quer dizer que alguém deva passar para o outro lado, o que sempre seria possível se a meta do caminho assim o justificasse, porém que se refere a um local legendário, algo que nos é desconhecido, que
tampouco pode ser precisado por ele com maior exatidão e que, portanto, de nada pode servir-nos aqui.
Em realidade, todas essas alegorias apenas querem significar que o inexeqüível é inexeqüível, o que já sabíamos. Mas aquilo em que cotidianamente gastamos as nossas energias, são outras coisas. A este propósito disse alguém: "Por que vos defendeis? Se obedecêsseis às alegorias, vós mesmos vos teríeis convertido em tais, com o que vos teríeis libertado da fadiga diária." Outro disse: "Aposto que isso é também uma alegoria." Disse o primeiro: "Ganhaste".
Disse o segundo: "Mas por infelicidade, apenas naquilo sobre alegoria". O primeiro disse: "Em verdade, não; no que disseste da alegoria perdeste."


CONTOS
Kafka


18 outubro 2005

La sombra de mi alma

La sombra de mi alma
huye por un ocaso de alfabetos,
niebla de libros
y palabras.

¡La sombra de mi alma!

He llegado a la línea donde cesa
la nostalgia
y la gota de llanto se transforma
alabastro de espíritu.



(¡La sombra de mi alma!)

El copo del dolor
se acaba,
pero queda la razón y la sustancia
de mi viejo mediodía de labios,
de mi viejo mediodía
de miradas.

Un turbio laberinto
de estrellas ahumadas
enreda mi ilusión
casi marchita.

¡La sombra de mi alma!

Y una alucinación
Me ordeña las miradas.
Veo la palabra amor
desmoronada.
¡Ruiseñor mío!
¡Ruiseñor!
¿Aún cantas?



LIBRO DE POEMAS
Federico García Lorca

14 outubro 2005

Longo é o desfilar das horas





















Este é um capítulo curto porque o Verão passou muito depressa com o seu sol ardente e as suas noites plenas de estrelas. É sempre rápido o tempo da felicidade. O Tempo é um ser difícil. Quando queremos que ele se prolongue, seja demorado e lento, ele foge às pressas, nem se sente o correr das horas. Quando queremos que ele voe mais depressa que o pensamento, porque sofremos, porque vivemos um tempo mau, ele escoa moroso, longo é o desfilar das horas.
Curto foi o tempo de Verão para o Gato e a Andorinha. Encheram-no com passeios vagabundos, com longas conversas à sombra das árvores, com sorrisos, com palavras murmuradas, com olhares tímidos porém expressivos, com alguns arrufos também.
Não sei se arrufos será a palavra precisa. Explicarei: por vezes a Andorinha encontrava o Gato abatido, de bigodes murchos e olhos ainda mais pardos. A causa não variava: A Andorinha saíra com o Rouxinol, com ele conversara ou tivera aula de canto – o Rouxinol era o professor. A Andorinha não compreendia a atitude do Gato Malhado, aquelas súbitas tristezas que se prolongavam em silêncios difíceis. Entre ela e o Gato jamais havia sido trocada qualquer palavra de amor, e, por outro lado, a Andorinha, segundo disse, considerava o Rouxinol um irmão.
Um dia – dia em que a aula de canto se prolongara para além do tempo costumeiro – quando os bigodes do gato estavam tão murchos que tocavam o solo, ela lhe pediu explicação daquela tristeza. O Gato Malhado respondeu:
- Se eu não fosse um gato, te pediria para casares comigo…
A Andorinha ficou calada, num silêncio de noite profunda. Surpresa? – não creio, ela já adivinhara o que se passava no coração do Gato. Zanga? – não creio tampouco, aquelas palavras foram gratas ao seu coração. Mas tinha medo. Ele era um gato e os gatos são inimigos irreconciliáveis das andorinhas.
Voou rente sobre o Gato Malhado, tocou-o de leve com a asa esquerda, ele podia ouvir os latidos do pequeno coração da Andorinha Sinhá. Ela ganhou altura, de longe ainda o olhou, era o último dia de Verão.


O GATO MALHADO E A ANDORINHA SINHÁ

Jorge Amado

12 outubro 2005

Mago

- Olha o Mago!... Olha o milionário!...
O patife do Tareco. Era de o derreter logo ali! A desgraça é que não podia passar da mansa indignação que o roía. Nem forças, nem coragem para mais. E, logo por azar, com o clube à cunha! Parecia de propósito. Raios partissem a D. Sância, e mais quem lhe gabava as almofadas! Por causa delas, pouco faltava para lhe cuspirem na cara!
- Com que então de visita aos bairros pobres? Obra de assistência ao desvalidos, não?
Até o bandido do Zimbro. Vejam lá! O engraçado! Não contente de lhe roubar a mulher, de lhe pregar um par deles do tamanho duma procissão, vinha ainda com provocações à vista de toda a gente. Ah, mas estava redondamente enganado, se cuidava que não recebia o troco devido.
- O cavalheiro seja mais delicado...
- Reparem nas falinhas dele... A tratar os amigos por cavalheiros!
- Amigos? Eu não tenho amigos da sua laia!
- Pesam-lhe na testa, coitado!
Desembestou. Cego da cabeça aos pés, atirou-se ao abismo. Infelizmente as ensanchas do Zimbro eram outras. Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra tais armas, que podia a simples indignação dum pobre mortal, gordo e lustroso? Servir de bombo da festa... É que nem a primeira acertou! Ágil e musculado, e com a maleabilidade de uma cobra, o inimigo furtou-se à sua fúria, e ripostou a valer ao golpe esboçado. Depois, foi o bom e o bonito! A seguir, uma saraivada de investidas traiçoeiras, meia dúzia de navalhadas de liquidar um homem. Só visto! No fim da luta, quando já não podia mais e se confessou derrotado, sangrava e gemia tanto, que até um polícia, em baixo, na rua estreita, se comoveu. O clube, esse, parecia doido de alegria. A Faísca rebolava-se no chão, de contente.
Fugiu desvairado pelos telhados. A lua, cada vez mais branca lá no alto, olhava-o com desdém. A cidade, adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma igreja, saía um pio agoirento.
Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria apenas uma humilhação, sem esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto da existência de pensar sequer numa baforada da úmida frescura que agora lhe atravessava as ventas e lhe deixava cantarinhas no bigode... Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visitas da D. Sância! Negra sorte! E tudo obra do coirão da velha... Se não fosse ela, em ver de ir ali esquadrilhado e a mancar da mão esquerda, estaria no Tinoco a soltar ganidos com os outros, depois de ter feito o Zimbro em pedaços... Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho de desespero, tal e qual um moribundo a despedir-se da vida... Miséria de destino! Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma...E tudo obra do estupor da sanataria!
Vinha rompendo a manhã. Um sino ao longe deu cinco horas. Abriam-se as primeiras janelas. Grandes laivos avermelhados anunciavam a chegada próxima do sol.
Parou. Lambeu a pata doente e sacudiu-se, num arrepio. Uma lassidão profunda começava a invadi-lo. Maldita D. Sância! Se nunca tivesse conhecido a tal sujeita...
Olha, olha, a enevoar-se-lhe a vista! Queriam ver que ia desmaiar?!
Encostou-se a uma chaminé, e ficou algum tempo sem dar acordo de si, a arfar penosamente. Até que uma onda de energia o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os olhos. Estava melhor, felizmente! Já enxergava claro outra vez. Podia continuar.
Em que trabalhos o metera o raio da senhoreca! E louvar a Deus safar-se com vida da brincadeira... Coça valente... Por um triz que não se ficava... Muita resistência tinha ele ainda!
A alguns metros apenas do jardim da casa, cuidou que tornava a desfalecer. E só então é que reparou: deixava um rastro de sangue por onde passava...
Fez das tripas coração e lá conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que vedava o paraíso da sua perdição. Saltava? Não saltava? Que infâmia, regressar aos mimos da D. Sância! Que nojo! Que ordinarice!
Mas a que propósito vinham agora as perplexidades e as recriminações? Sim, a que propósito? Fartinho de saber que nem sequer lhe passara pela cabeça a idéia de resolver o caso doutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforço concreto fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não havia uma dúzia de horas, ouvira a voz de Lambão como um eco da própria consciência... E, afinal, ali estava outra vez! E viera de livre vontade... Ninguém o obrigara... Já roído de remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim, voltara miseravelmente... E à procura de quê? Da paz podre, dum conforto castrador... Que abjeção! Que náusea!
E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradação, Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos da D. Sância.



O BICHOS
Miguel Torga

11 outubro 2005

Saudades de quem regressou

Lembro-me da casa se ter enchido de gargalhadas coloridas enquanto uma mesa posta com amor o esperava.
Também eu o aguardava, feliz por reencontrar aquele tio que morava nas minhas lembranças e cujas cartas obrigava a minha mãe a ler vezes sem conta, na esperança de abreviar o seu regresso.
Regressou homem feito, para os braços dos pais e dos irmãos que o tinham visto partir, menino num corpo de gente grande, assustado com as histórias que ouvia contar a quem tinha regressado.
Passada a emoção da chegada, nos seus olhos descobrimos um coração sem alma, despedaçado pelas imagens dos companheiros que viu morrer e pelos desconhecidos que foi obrigado a matar.
Voltou um estranho para uma família que o amava mas que não sabia como curar as feridas invisíveis que transportava na imensidão do olhar.
Morreu seis meses depois.
- Doença incurável. Disseram os médicos a uma família incrédula.
Hoje, sei que foi a tristeza que trouxe consigo que o fez desistir de viver.
Para mim, continua a ser o meu herói, o meu tio amado, companheiro de brincadeiras e cujo o sorriso doce de menino, continua a acompanhar-me no retrato que teimo em guardar, num lugar especial do meu coração.

Este post é dedicado ao meu tio, de quem continuo a sentir muitas saudades e que por estes dias comemoraria o seu 50ª aniversário.


07 outubro 2005

Para além da aparência das coisas















Que foi que responderam do ministério, perguntou o delegado do p.d.m., Não sabem que pensar, é natural que o mau tempo esteja a reter muita gente em casa, mas que em toda a cidade suceda praticamente o mesmo que aqui, para isso não encontram explicação, Por que diz praticamente, perguntou o delegado do p.d.d., Em algumas assembleias de voto, é certo que poucas, apareceram eleitores, mas a afluência é reduzidíssima, como nunca se viu, E no resto do país, perguntou o representante do p.d.e., não é só na capital que está a chover, É isso que desconcentra, há lugares onde chove tanto como aqui e apesar disso as pessoas estão a votar, como é lógico são mais numerosas nas regiões onde o tempo está bom, e por falar nisto, dizem que os serviços meteorológicos prevêem melhoria do tempo para o final da manhã, Também pode acontecer que vá de mau a pior, lembrem-se do ditado, ao meio-dia carrega ou alivia, advertiu o segundo vogal, que até agora ainda não tinha aberto a boca. Fez-se um silêncio. Então o secretário enfiou a mão num dos bolsos exteriores do casaco, sacou de lá um telefone portátil e marcou um número. Enquanto esperava que o atendessem, disse, É mais ou menos como o que se conta da montanha e de Maomé, uma vez que não podemos perguntar a eleitores que não conhecemos por que é que não vêm votar, fazemos a pergunta à família que é conhecida, olá, viva, sou eu, sim, continuas aí, por que é que ainda não vieste votar, que está a chover sei-o eu, ainda tenho as perneiras das calças molhadas, sim, é verdade, desculpa, esqueci-me de que me tinhas dito que virias depois do almoço, claro, telefonei-te porque isto aqui está complicado, nem imaginas, se eu te disser que até agora não apareceu ninguém a pôr o voto és capaz de não acreditar, bom, então cá te espero, um beijo. Desligou o telefone e comentou, irónico, Pelo menos um voto está garantido, a minha mulher virá à tarde. O presidente e os restantes membros entreolharam-se, saltava à vista que havia que seguir o exemplo, mas não menos que nenhum deles queria ser o primeiro, seria reconhecer que em rapidez de raciocínio e desembaraço quem leva a palma nesta assembleia eleitoral é o secretário. Ao vogal que tinha ido à porta ver se chovia não lhe custou muito a compreender que ainda teria de comer muito pão e muito sal antes de chegar à altura de um secretário como o que temos aqui, capaz, com a maior sem-cerimónia do mundo, de sacar um voto de um telefone portátil como um prestidigitador tiraria de uma cartola um coelho. Vendo que o presidente, retirado a um canto, falava para casa através do seu portátil, e que outros, utilizando os seus próprios aparelhos, discretamente, em sussurros, faziam o mesmo, o vogal da porta apreciou a honestidade dos colegas que, ao não usarem o telefone fixo ali colocado, em princípio, para uso oficial, nobremente economizavam dinheiro ao estado. O único dos presentes que por não ter telefone portátil tinha de resignar-se a esperar as notícias dos outros era o representante do p.d.e., devendo acrescentar-se, no entanto, que, vivendo sozinho na capital e tendo a família na província, o pobre homem não tem a quem chamar.


ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ
José Saramago

06 outubro 2005

A Superstição é imortal

Quando eu era bem menino
Tinha fadas no jardim
No porão um monstro albino
E uma bruxa bem ruim.

Cada lâmpada tinha um génio
Que virava ano em milénio
E, coisa bem mais perversa,
Sapo em rei e vice-versa.

Tinha Ciclope,Centauro,
Autósito, Hidra e megera,
Fênix, Grifo, Minotauro,
Magia, pasmo e quimera.



Mas aí surgiram no horizonte
Além de Custer e seus confederados
A tecnologia mastodonte
Com tecnologistas bem safados
Esses homens da ciência me provaram
Que duendes, bruxas e omacéfalos
Eram produtos imbecis de meu encéfalo.
Nunca existiram e nunca existirão:
uma decepção!

Mas continuo inocente, acho.
Ou burro, bobo, ou borracho.
Pois toda noite eu vejo todo dia
Tudo que é estranho, raro, ou anomalia:
Padres sibilas
Hidras estruturalistas
Ministros gorilas
Avis raras feministas
Políticos de duas cabeças
Unicórnios marxistas
Antropólogas travessas
Mactocerontes psicanalistas
Cisnes pretos arquitetos
Economistas sereias
Democratas por decreto
E beldades feias
Que invadem a minha caverna
E me matam de aflição
Saindo da lanterna
Da televisão.


POEMAS
Millôr Fernandes

04 outubro 2005

Menina dos olhos doces












Menina dos olhos doces
adormece ao meu cantar:
Tenho menina de trapos,
Tenho uma voz de luar...

Os meus braços são a lua
quando ela é quarto crescente:
dorme menina de trapos,
meu pedacinho de gente.


CANÇÃO DE EMBALAR BONEQUINHAS POBRES
Matilde Rosa Araújo

03 outubro 2005

Há que penar para aprender a viver

Geme o restolho, triste e solitário
a embalar a noite escura e fria
e a perder-se no olhar da ventania
que canta ao tom do velho campanário

Geme o restolho, preso de saudade
esquecido, enlouquecido, dominado
escondido entre as sombras do montado
sem forças e sem cor e sem vontade

Geme o restolho, a transpirar de chuva
nos campos que a ceifeira mutilou
dormindo em velhos sonhos que sonhou
na alma a mágoa enorme, intensa, aguda


Mas é preciso morrer e nascer de novo
semear no pó e voltar a colher
há que ser trigo, depois ser restolho
há que penar para aprender a viver

e a vida não é existir sem mais nada
a vida não é dia sim, dia não
é feita em cada entrega alucinada
p’ra receber daquilo que aumenta o coração


Geme o restolho, a transpirar de chuva
nos campos que a ceifeira mutilou
dormindo em velhos sonhos que sonhou
na alma a mágoa enorme, intensa, aguda
Mas é preciso morrer e nascer de novo.....




RESTOLHO
Mafalda Veiga
In: "Pássaros do Sul", 1987