29 abril 2005

A vida é feita de pequenos nadas

Segunda-feira trabalhei de olhos fechados
Na terça-feira acordei impaciente
Na quarta-feira vi meus braços revoltados
Na quinta-feira lutei com a minha gente
Na sexta-feira soube que ia continuar
No sábado… fui à feira do lugar

Mais uma corrida mais uma viagem
Fim-de-semana é para ganhar coragem

Muito boa noite Senhoras e Senhores
Muito boa noite Meninos e Meninas
Muito boa noite Manueis e Joaquinas
Enfim, boa noite gente de todas as cores e feitios e medidas
E perdoem as pessoas que ficarem esquecidas
Boa noite amigos, companheiros, camaradas

A vida é feita de pequenos nadas
A vida é feita de pequenos nadas
A vida é feita de pequenos nadas
A vida é feita de pequenos nadas


Somos tantos a não ter quase nada
A uns poucos que tem quase tudo

A vida é feita de pequenos nadas
A vida é feita de pequenos nadas
A vida é feita de pequenos nadas
A vida é feita de pequenos nadas


E o que é certo que os que têm quase tudo
Devem tudo aos que têm quase pouco


A vida é feita de pequenos nadas
A vida é feita de pequenos nadas
A vida é feita de pequenos nadas
A vida é feita de pequenos nadas




Álbum PANO CRÚ
Sérgio Godinho

28 abril 2005

Apolo e as putas

Agora que se fez noite penso que apenas vinte e quatro horas antes estava a nadar numa piscina cheia de flores num hotel de luxo e pensando onde havia de ir para me divertir, enquanto com o queixo apoiado na borda, lia e procurava decorar um poema de William Butler Yeats que evoca a suavidade passada e as profundas sombras dos meus olhos; se o grande poeta moderno da minha pátria me visse agora, choraria? Pelo contrário, creio que ele previu o meu destino (segundo Leonello Padavoni, um grande poema adivinha e transmite-nos aquilo que vamos ser) quando perguntou por aqueles que amaram os meus momentos de graça despreocupada e a minha beleza, eterna ou passageira, acrescentando: quantos foram, quantos? Quantos olhares, quantos amantes platónicos são proporcionados a quem aparece no écran, substituindo Apolo na mitologia moderna proposta pelo cinema? Responde o poeta? Diz mais alguma coisa? Tento recordar o fim do poema, mas a minha memória na morte não responde, mantém-se teimosamente muda. Animo-me. Quererá isso dizer que, inacabado o poema, ainda me resta um destino para viver, uma margem inacabada da minha própria vida na morte?

Forniquei. Morri. Descobri que morrer é ler na mente dos vivos.

Mas o meu apetite profissional (para não dizer artístico) não se sacia assim tão facilmente. Será esta a minha carta estelar? As minhas produtoras decidi-lo-ão por mim. A noite assustou-as. Estão à deriva. Tantos elas como eu o sabemos. Receiam que o motor a funcionar as lance numa corrida incontrolável, catastrófica. Podiam, como sugeriu Doris, lançar a âncora e atirarem-se ao mar nas quatros direcções da rosa-dos-ventos. Logo veriam qual delas – Norte, Sul, Este ou Oeste – as conduziria mais rapidamente a terra.

Creio que o seu problema não é este. Se eu passo a noite flutuando e olhando as para as estrelas, as mulheres e os astros quereriam desaparecer da noite. A solidão à deriva dá-lhes uma noite absoluta, sem tecto, que não é a delas, aquela a que estão habituadas. Esta noite devolve-as a um abandono de que fugiram durante as suas curtas vidas, enganando-se a si mesmas. Jovens e pentelhudas. Com inteligência suficiente para não me atirarem aos peixes, mas sem inteligência para se deixarem guiar, não pelos instrumentos que as aterram ou os termos que desconhecem (olho-as e acredito que, graças a elas, a tecnologia torna a ser mágica)., mas pelas estrelas que sempre ignoraram. Talvez encontrem a sua única segurança na imobilidade.

Como se me ouvisse, Dolores diz em voz alta: «Decididamente, não temos boa estrela.

Gostaria de compreender a que espécie pertencem. Tanto a técnica como a natureza lhes são igualmente alheias. Para quê, para que forma criadas? Pensando nelas a partir da morte reconheço-as e reconcilio-me com elas. São as criaturas do artifício, nem natureza, nem técnica. Encantam o mundo em seu redor? Talvez sejam apenas a energia do que é artificial. Que pouco, que intenso, que inútil é tudo o que nos acontece!


A LARANJEIRA
Carlos Fuentes

27 abril 2005

Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo!
E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...
E não sou nada!...


SONETOS
Florbela Espanca

26 abril 2005

A reconciliação

Na noite em que morreu fechei-me com ela. Depois de tantos anos sem nos falarmos, partilhámos aquelas últimas horas repousando no veleiro de água mansa da seda azul, como ela gostava de chamar à sua cama, e aproveitei para lhe dizer tudo o que não pudera dizer-lhe antes, tudo o que eu tinha calado desde a noite terrível em que lhe bati.

Tirei-lhe a camisa de dormir e revistei-a com cuidado procurando algum sinal de doença que justificasse a sua morte e, não o encontrando, soube que simplesmente tinha cumprido a sua missão nesta terra e voara para outra dimensão onde o seu espírito, livre por fim dos lastros materiais, se sentiria mais a seu gosto.

Não havia nenhuma deformidade nem nada terrível na sua morte. Examinei-a demoradamente, porque fazia muitos anos que não tinha ocasião de a observar à vontade e nesse tempo a minha mulher tinha mudado, como nos acontece a todos com o avançar da idade. Pareceu-me tão formosa como sempre. Tinha adelgaçado e julguei que tinha crescido, que estava mais alta, mas logo compreendi que era um efeito ilusório, resultado do meu próprio mirrar.

Antes sentia-me como um gigante a seu lado, mas ao deitar-me com ela na cama, notei que éramos quase do mesmo tamanho. Tinha a sua mata de cabelo encaracolado e rebelde que me encantava quando casamos, suavizada por mechas brancas que lhe iluminavam o rosto adormecido. Estava muito pálida, com sombras nos olhos e notei pela primeira vez que tinha pequenas rugas muito finas na comissura dos lábios e na testa. Parecia uma menina. Estava fria, mas era a mulher doce de sempre e pude falar-lhe tranquilamente, acariciá-la, dormir um pouco quando o sono venceu a dor, sem que o facto irremediável da sua morte alterasse o nosso encontro. Reconciliámo-nos por fim.


A CASA DOS ESPÍRITOS
Isabel Allende
1987

25 abril 2005

As portas que Abril abriu

Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raíz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado.

Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.

Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.

Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.

Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.

Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.

Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.

Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação.

Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.

Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.

Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.

Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril
fez Portugal renascer.

E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.

E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe
volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
que agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.


OBRA POÉTICA
José Carlos Ary dos Santos
1975

20 abril 2005

O destino que não escolhi

Dia 14 faço um ano de acidente e só agora realmente vou começar o tratamento de fisioterapia na BBB. Foram dez meses de vértebra em frangalhos, a usar aquele colete de ferro e mais um mês de espera de vaga na BBB.
Um ano em que tive uma certeza: a minha vida mudou imenso. Sou um outro Marcelo, não mais o Paiva, e sim Rodas. Não mais Violinista, e sim deficiente físico. Ganhei algumas cicatrizes pelo corpo, fiquei mais magro e agora uso barba. Não fumo mais Minister, agora passei para Luis XV. O meu futuro é uma quantidade infinita de incertezas. Não sei como vou estar fisicamente, não sei como irei ganhar a vida e não estou com vontade de dar nenhuma lição. Não quero que as pessoas me encarem como um rapaz que apesar de tudo transmite muita força. Não sou modelo para nada. Não sou herói, sou apenas vítima do destino, entre milhões de destinos que não escolhemos. aconteceu comigo. Injustamente, mas aconteceu. É foda, mas que fazer...
Muito tempo depois, soube que estivera mais morto do que vivo naquela UTI. A minha mãe conta que, logo após chegar a Campinas, perguntou para o médico o que é que ela poderia fazer, e ele disse:
- Nada, reze apenas.
Hoje em dia, pergunto-me se preferiria estar morto.
Não sei, nem quero saber. Só sei que, nas noites em que tenho insónia, lembrou-me de um rapaz que subiu a uma pedra e gritou:
- Aí Gregor, vou descobrir o tesouro que escondeste aqui em baixo, seu milionário disfarçado.
Pulou com pose de Tio Patinhas, bateu com a cabeça no chão e foi ai que ouviu a melodia: BIIIIN.


FELIZ ANO VELHO
Marcelo Rubens Paiva


19 abril 2005

O Gabiru

No último andar do prédio mora o Gabiru, um solitário filósofo, esguio e triste como um enterro. Sabe tudo e nunca viveu. O que existe para lá do Hospital é para ele um grande mar ignorado e verde.

A realidade também não na entende: da vida só se fartou com sofreguidão desta fonte que transborda – o sonho. Tem o olhar estático e, metido na trapeira com ignóbeis calhamaços, deixa correr as suas ideias à solta como os rios. Assim, metafísico e pobre, de raras palavras, deitou-se a armar a Mouca, escárnio de soldados.

Nasceu para sonhar. Tem um suspiro de alívio quando se fecha na mansarda e exclama: – Vou idear!...– Sabe palavras, teorias, cartapácios, e nunca viu ao pé os rios, os montes, nem as árvores. Remexe em ideias profundas e nunca encontrou a realidade.


É assim feliz e triste. Posto à janela do cubículo espreita por cima do Hospital, sente correr o doirado jorro dos dias, cisma num portentoso sonho e ama. Entre as ideias que vai tecendo surge sempre aquela figura trágica, que todo o dia ri com os ladrões e os soldados.

Ignora a vida. Alguma coisa, porém, existe de imaterial – emoção violeta e oiro – que o rodeia, quase o toca e súbito foge magoada e aos soluços. E fio a fio vai tecendo e constrói a sua teoria.

Este mundo é talvez, como disse um filósofo desconhecido, uma gota caída dum oceano infinito de beleza.

O universo é o sonho dolorido de Deus.

Nada se perde. A alma, as ideias e as emoções, fazem parte da força que faz florir o céu e os humildes pomares ignorados.

O mundo é misterioso, cheio de gritos. A cada passo um túmulo donde renasce uma amálgama, uma poeira verde, azul, doirada, cova onde o Desconhecido remexe formas: o mar, as criaturas, as pedras, as tempestades, tudo vivo e a falar! O homem passa inconsciente, mas eu tremo de pavor.


OS POBRES
Raul Brandão

18 abril 2005

O menino dos pés frios

Era uma vez uma casa. Muito grande. Com um tecto altíssimo, nem sempre azul. Uma casa enorme onde habitava uma grande família: uma família tão grande que, por vezes, não julgavam os seus membros que se conheciam. E se deviam amar.
Houve um menino que entrou nesta casa estava ela toda branca. No chão tapetes de neve, cristais de água de uma brancura que estremecia. E as próprias árvores escorriam essa brancura. E frio. Iluminava-a uma estrela tão brilhante que, sobre o tecto, parecia que poisava sobre as nossas mãos.
Ora um dia, em que fazia anos em que esse menino entrara nessa casa, outro menino por ela andava com frio. Pelo chão, pelos milhões de cristais, caminhavam os seus pezitos enregelados. Tanto frio que nem podia olhar a estrela brilhante. Nem os milhões de cristais que pisava.
Uma mulher chorava a um canto dessa casa. E era triste essa mulher. Estava triste e cansada. Na casa nem tudo era belo. Ali estava aquele menino cheio de frio. E, como ele, tantos meninos.
E, já há quase dois mil anos, um menino entrara na asa, que ficou mais clara com a luz brilhante do tecto. O menino entrou só para dizer uma palavra pequenina: AMOR.
Então essa mulher perguntou ao menino dos pés frios:
– Tu não tens a tua casa?
O menino olhou a mulher triste e ficou triste. Ambos estavam tristes. E disse quase envergonhado que não.
– Tu não tens roupa? Sapatos? Um lume? Pão?
A cabeça (tão linda!) do menino ia abanando sempre a dizer não. A mulher triste começou a ter vergonha. Então ela consentia que na sua casa, na casa de todos, de tecto nem sempre azul, houvesse um menino sem roupa, sem lume, sem pão? Ela consentia uma coisa assim? E os outros também?
Escorregaram-lhe pela face já enrugada duas lágrimas transparentes. De água. Água como a que tombava do tecto, como a que se estendia nos mares.
E perguntou mais ao menino:
– E para onde vais? Eu dou-te qualquer coisa para o caminho...
O menino olhou para ela admirado. Não lhe disse para onde ia. Observou-lhe apenas:
– Tens duas gotas de água nos teus olhos que reflectem o céu azul e a lâmpada do tecto. Não sentes?
A mulher deixou cair pelo rosto enrugado as duas lágrimas. A pele, então, ficou-lhe mais lisa. E ela tornou-se menos curva. Ergueu-se. Estendeu, sorrindo, os dois braços ao menino. E disse:
– Fica. Perdoa.
E o menino ficou. Nos seus braços. Encostado ao seu peito. Com os pés aquecidos sobre o campo de neve.
E a mulher entendeu que não adiantava chorar ao canto da casa. E o seu vestido era uma bandeira. E o seu coração uma flor. Com o menino a seu lado.



O SOL E O MENINO DOS PÉS FRIOS
Matilde Rosa Araújo

15 abril 2005

Um espectáculo de muitas mortes

A essa hora Alexandra estava deitada na guerra de um homem que recordava mortes vividas. Ninguém acreditava, dizia o homem, mas as florestas tinham tantos olhos como folhas e o capim explodia; no capim alto de Maleja Namba havia terroristas de olhos acesos a todas as horas. Às escuras, Alexandra escutava o guerreiro cansado, como se ele estivesse a ler na noite uma África infestada de minas e de colunas militares a baterem as picadas, e lembrava-se do Beto que pairava longe, na Escócia, mas cada dia mais perto da guerra à medida que as colunas de soldados avançavam e se perdiam.

Negros arrastados vivos por camiões, missas de guerra; o furor do napalm, aldeias em labaredas; troféus. Dentro de três, quatro anos, seria a vez do Beto, a idade do morticínio. Depois, quando voltasse, e se voltasse, chegaria terrivelmente morto por dentro como o homem que recordava, naquela cama, batalhas de matadores inocentes e de heróis assassinos. Assassinos, sobretudo – esses é que ele rememorava. O tenente Max Bruto, o sanguinário capitão Robles. Por exemplo. Em Maleja Namba as hienas enlouqueciam, a rondar os cemitérios, com o cheiro da carne fresca, recordava o vulto deitado com Alexandra.

Alexandra contornou-lhe a face com um dedo demorado, configurando-a, meditando-a – insistia em reconhecê-lo? Mas era ele, o Doutorzinho; apesar da barba e do olhar emudecido, era ele, o menino das bruxas, o Doutorzinho soldado tantas vezes lembrado e com que urgência, com que desejo. Alexandra estreitou-o muito contra si.

Sentia-o empedernido, um corpo que a guerra tinha deixado nulo, incapaz de amar, rejeitando-o a seguir, vencido e apavorado. Neurose, ele próprio confessara há pouco. Depressão. O preço do espectáculo de muitas mortes, concluía Alexandra abraçada a ele.


ALEXANDRA ALPHA
José Cardoso Pires
1987



14 abril 2005

Como um búzio do campo


«Há tanto tempo que queria dizer-te. Mas as palavras teimavam em calar-se, engasgadas em mim, presas nos cadeados que nos apressamos a criar dentro de nós, fechando portas e janelas, protegendo-nos de sentimentos fortes, impedindo-nos de os revelarmos.
Agora são as minhas mãos que falam, que revelam, preto no branco. Ouves o que elas te dizem? Falam de um amor que perdura. De um sentimento que galopa no meu peito e que quer saltar todos os obstáculos para ganhar-te.
A minha ambição é poder fazer-te rir à gargalhada. Ouvir-te feliz. Essa é a imagem que guardo comigo. Os teus cabelos soltos, selvagens, cabeça para trás e um riso estridente, vitima de uma bebedeira de felicidade. Que riso despojado de preconceitos, que riso contagiante, cheio de brilho!
Contigo reencontro a minha infância. Como se fosses um búzio do campo: trazes contigo os sons dos prados por onde rebolava sem preocupações, sem pensar sequer que vivia feliz. Nunca se pensa na felicidade quando se é criança e nunca se deixa de pensar nela quando se é adulto. E não são as crianças mais naturalmente felizes?
Andei a monte. Perdi-me para me encontrar. E, como diz o nosso caro Bernardo Soares, «tudo é complexo para quem pensa» e, agora, eu só quero voltar a sentir.»


JOGOS DE PALAVRAS
Ana Teresa Silva

2001


13 abril 2005

A futilidade da vida humana

Parecia-lhe agora que todos aqueles anos, idos e esquecidos, tinham sido completamente desperdiçados. Os rapazes, joviais e buliçosos, faziam as mesmas coisas que ele fizera: era como se nem um dia tivesses decorrido desde que deixara a escola. Contudo naquele lugar, onde pelo menos de nome, conhecera todos, eram-lhe agora desconhecidos. Dentro de poucos anos, também outros substituiriam aqueles, que iriam sentir-se depôs tão estranhos como ele. Esta reflexão, porém, não lhe trouxe alívio algum, apenas lhe fazia ver, nítida a futilidade da vida humana. Cada geração, repetia um ciclo trivial. Que fim teriam levado os seus companheiros? Deviam andar perto dos 30 anos. Alguns estariam mortos; outros casados e cm filhos. Seriam soldados e sacerdotes, advogado e médicos. Eram homens graves que começavam a deixar a mocidade para trás. Teriam alguns deles malbaratado a vida como ele? Pensou no rapaz a que fora tão devotado. Era engraçado, não conseguia lembrar-se do nome. Recordava-se exactamente do seu aspecto, pois fora o seu maior amigo; mas o nome é que não lhe vinha de forma alguma à lembrança. Pensou no passado, sorrindo, divertido das ciumeiras que sofrera por causa dele. Era irritante não lhe ocorrer aquele nome. Desejou ser outra vez rapaz como os que via a vaguear pelo pátio, a fim de que, evitando os seus erros, pudesse começar de novo e tirar mais proveito da vida. Sentiu uma solidão intolerável. Quase lamentou ter saído da penúria que sofrera nos últimos dois anos, pois a luta desesperada pela subsistência amortecera-lhe a dor de viver. «Com o suor do teu rosto ganharás o pão de cada dia»: não era anátema lançado sobre a Humanidade, mas o bálsamo que a reconciliava com a existência.
Estava, porém, impaciente consigo mesmo. Relembrou a sua ideia acerca da tissura da vida; os sofrimentos porque passara não eram mais do que uma parte da decoração caprichosa e bela. Repetiu para si próprio, veementemente, que devia aceitar com alegria todas as coisas – o tédio e a exaltação, o prazer e a dor – porque isso contribuía para a riqueza do desenho. Procurara o belo conscientemente e lembrava-se de ter, ainda criança, ter olhado com prazer para a catedral gótica que se avistava da escola. Foi até lá e contemplou o vulto maciço, cinzento sob o céu nublado, com a torre central a erguer-se como os louvores dos homens ao seu Deus. Mas os rapazes jogavam ténis e eram ágeis, fortes e activos. Philip não podia deixar de ouvir-lhes as exclamações e as risadas. O clamor da mocidade continuava insistente e era apenas com os olhos que ele via o belo espectáculo que tinha diante de si.


SERVIDÃO HUMANA
Somerset Maugham
1914

11 abril 2005

A música é a negação das frases

Para ele, a música é libertadora: liberta-o da solidão e da clausura. Liberta-o da poeira das bibliotecas e abre-lhe portas no corpo por onde a alma pode sair e confraternizar. Gosta de dançar e tem pena que Sabrina não partilhe essa sua paixão.

Lembrou-se da música barulhenta do restaurante e pensou: «o ruído tem uma vantagem. É que as palavras não se ouvem.» Desde a juventude não fizera outra coisa senão falar, escrever, dar aulas, inventar frases, exemplificar fórmulas, corrigi-las, de tal maneira que as palavras já não tinham nada de exacto, o sentido esbatia-se-lhes, perdiam o conteúdo e só ficavam migalhas, moinhas, poeira, areia que lhe flutuava no cérebro e lhe fazia dor de cabeça, que era a sua insónia, a sua doença. Apeteceu-lhe então, confusa e irresistivelmente uma música enorme, um ruído absoluto, uma barulheira infernal que se espalha-se sobre todas as coisas, inundasse tudo, abafa-se tudo, onde a dor, a vaidade e a mesquinhez das palavras perecessem para todo o sempre. A música era a negação das frases, a música era a anti-palavra! Apetecia-lhe ficar enlaçado para sempre com Sabrina, apetecia-lhe calar-se, nunca mais pronunciar palavra e deixar o prazer confluir no clamor orgástico da música. Foi nessa bem-aventurada barulheira que adormeceu.


A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER
Milan Kundera
1983

08 abril 2005

O calor da memória

Pela noite de estrelas, lúcida, definitiva, como um cristal. Venho à janela, olho-a, noite primitiva. E uma alegria intrínseca, em filigrana, no espaço rarefeito. Que é que me dói? Qualquer coisa que perdi há muito tempo e já não me lembra. Devia ser muito bela. Tão bela que nunca a soube. Porque no que não se sabe é que a beleza é grande. Uma mão terna na face, um cálido choro. Não um choro pelo que se me perdeu, mas apenas choro por mim. Como as crianças, quando já se esqueceram as razões e choram ainda. Que é que me dói? Onde é que é? Tão frágil assim. Como a um breve abalo da terra e a casa desmoronada e eu subitamente nu. Construí a minha força com aplicação, metodicamente, que é que é nosso? Pelo céu grande e negro, trémulo de estrelas, meu olhar grave. Regresso à lareira, olho o brasido, aqueço-me. É o calor da memória. Cerra-se-me à volta e fala longamente – que é que diz? Três cepos encarniçados, prestes a desmoronar-se, com breves chamas ainda, lampejando aqui e além. É o fogo do lar. Talvez devesse deitar-me, mas não tenho sono. Também não tenho nada para em vez de sono. Ideias? Sonhos? Lembranças? Frémito da memória, mas sem recordações para ela. Sinto como quem lembra, mas sem nada para lembrar.


ALEGRIA BREVE
Vergílio Ferreira

07 abril 2005

O preço da liberdade

Mas o que é a liberdade?
Passei grande parte da minha vida sendo escravo de alguma coisa, portanto devia entender o significado desta palavra. Desde criança lutei para que ela fosse meu tesouro mais importante. Lutei contra meus pais que queriam que eu fosse engenheiro ao invés de escritor. Lutei contra meus amigos no colégio, que logo no início me escolheram para ser vítima de suas brincadeiras perversas, e só depois de muito sangue escorrido pelo meu nariz e pelos deles, só depois de muitas tardes quando precisava esconder de minha mãe as cicatrizes – porque eu tinha que resolver os meus problemas, e não ela - consegui mostrar que podia levar uma surra e não chorar. Lutei para arranjar um emprego que me sustentasse, fui trabalhar como entregador em uma loja de ferragens, para ficar livre da famosa chantagem familiar, "nós te damos dinheiro, mas você precisa fazer isto e aquilo".

O inspector diz que estou livre. Livre estou agora, e livre estava dentro da cadeia, porque a liberdade ainda continua sendo a coisa que mais prezo neste mundo. Claro que isso me levou a beber vinhos que não gostei, fazer coisas que não devia ter feito e que não tornarei a repetir, ter muitas cicatrizes em meu corpo e em minha alma, ferir algumas pessoas – às quais terminei pedindo perdão, em uma época que compreendi que podia fazer tudo, excepto forçar outra pessoa a seguir-me em minha loucura, minha sede de viver. Não me arrependo dos momentos que sofri, carrego minhas cicatrizes como se fossem medalhas, sei que a liberdade tem um preço alto, tão alto quanto o preço da escravidão; a única diferença é que você paga com prazer, e com um sorriso, mesmo quando é um sorriso manchado de lágrimas.


O ZAHIR
Paulo Coelho

06 abril 2005

Para ser grande

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.

Põe quanto és:
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.


Ricardo Reis
14/2/1933



04 abril 2005

Pescador de Almas

Tu que nas margens do lago
Não escolhes nem sábios nem ricos
Queres somente que eu te siga

Senhor tu fixaste os meus olhos
E quiseste meu nome chamar
Eu deixei o meu barco na praia
E contigo encontrei outro mar

Tu sabes bem o que eu tenho
No meu barco não há ouro nem prata
Somente as redes e o meu trabalho

Tu necessitas de mim
P’ra render os que estão cansados
Do meu amor, sinal de esperança

Tu, pescador de outros lagos
Ânsia eterna dos homens que esperam
Meu bom amigo, muito obrigado


Quem morre não desaparece, apenas parte mais cedo
Até Sempre!

02 abril 2005

O Bem e o Mal têm a mesma face

- Ao conceber este quadro, Leonardo da Vinci deparou-se com uma grande dificuldade: precisava pintar o Bem - na imagem de Jesus - e o Mal - na figura de Judas, o amigo que resolve traí-lo durante o jantar. Interrompeu o trabalho no meio, até que conseguisse encontrar os modelos ideais.

"Certo dia, enquanto assistia um coral, viu em um dos rapazes a imagem perfeita de Cristo. Convidou-o para o seu atelier, e reproduziu seus traços em estudos e esboços.

"Passaram-se três anos. A 'Última Ceia' estava quase pronta - mas Da Vinci ainda não havia encontrado o modelo ideal de Judas. O cardeal responsável pela igreja, começou a pressioná-lo, exigindo que terminasse logo o mural.

"Depois de muitos dias procurando, o pintor encontrou um jovem prematuramente envelhecido, esfarrapado e bêbado, atirado na sarjeta. Com dificuldade, pediu a seus assistentes que o levassem até à igreja, pois já não tinha tempo de fazer esboços.

" O mendigo foi carregado até lá, sem entender direito o que estava acontecendo: os assistentes o mantinham de pé, enquanto Da Vinci copiava as linhas da impiedade, do pecado e do egoismo, tão bem delineadas naquela face.

"Quando terminou, o mendigo - já um pouco refeito da sua bebedeira - abriu os olhos e notou a pintura na sua frente. E disse, numa mistura de espanto e tristeza:
- Eu já vi esse quadro antes!
- Quando? - perguntou um surpreso Da Vinci.
- Há três anos atrás, antes de eu perder tudo o que tinha. Numa época em que eu cantava num coro, tinha uma vida cheia de sonhos, e o artista me convidou para posar como modelo para a face de Jesus."

O estrangeiro deu uma longa pausa, os seus olhos fitavam o padre que bebia sua cerveja, mas Chantal sabia que as palavras que dizia eram dirigidas para ela.

- Ou seja, o Bem e o Mal têm a mesma face; tudo depende apenas da época em que cruzam o caminho de cada ser humano.


O DEMÔNIO E A SRTA. PRYM
Paulo Coelho
2000

01 abril 2005

Procura-se um amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir.
Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa.
Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.
Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.
Não é preciso que seja em primeira-mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão.

Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados.
Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar.
Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa.
Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objectivo deve ser o de amigo.
Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo.
Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância.
Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade.
Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo.

Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas.
Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.


EXCERTOS
Vinícius de Moraes