29 julho 2005

Ilha Azul


O tempo não me diz nada
Nem o homem da portagem na entrada da auto-estrada
A ponte ficou deserta nem sei mesmo se Lisboa
Não partiu para parte incerta
Viva o espaço que me fica pela frente e não me deixa recuar
Sem paredes, sem ter portas nem janelas
Nem muros para derrubar!


125 AZUL
Trovante

27 julho 2005

O Socorro













Ele foi cavando, foi cavando, cavando, pois sua profissão - coveiro - era cavar. Mas, de repente, na distracção do ofício que amava, percebeu que cavara de mais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enlouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardas. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia mais um som humano, embora o cemitério estivesse cheio dos pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: «O que é que há?» O coveiro então gritou, desesperado: «Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!». «Mas coitado!» - condoeu-se o bêbado. - «Tem toda razão de estar com frio. Alguém tirou a terra toda de cima de você, meu pobre mortinho!». E, pegando na pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente.

Moral: Nos momentos graves é preciso verificar muito bem para quem se apela



Millôr Fernandes
in 'Pif-Paf'

26 julho 2005

Após longo silêncio















A palavra após longo silêncio; certo é que,
Distantes ou mortos todos os outros amantes
Oculta pela sombra a luz hostil,
Corridas as cortinas sobre a noite inimiga,
Dissertemos e dissertemos
Acerca do supremo tema da Arte e do Canto:
A decrepitude física é sabedoria; jovens
Nos amávamos e éramos ignorantes.

POEMAS
W.B.Yeats

20 julho 2005

Nossa Senhora das Andorinhas

- Monge, deixa-me entrar nesta gruta. Gosto das grutas e tenho dó dos que nelas procuram abrigo. Foi numa gruta que dei o meu filho ao mundo, e, numa gruta, sem receio o confiei à morte, para que vivesse o segundo nascimento da Ressurreição.
O anancoreta afastou-se para a deixar passar. Sem hesitar, ela encaminhou-se para a entrada da caverna, escondida por detrás do altar. A enorme cruz impedia-lhe a passagem; afastou-a devagarinho, como a um objecto familiar, e penetrou na gruta.
Ouviram-se gemidos mais agudos, chilreios e como que um bater de asas. A mulher falava às Ninfas numa língua desconhecida, que era talvez a das aves ou dos anjos. Ao fim de um instante, reapareceu ao lado do monge que não parara de rezar.
- Olha monge – disse ela –, e escuta.
Uma infinidade de gritinhos estridentes saía-lhe de sob o mano. Abriu-o de par em par, e o monge Therapion viu que ela trazia nas pregas do vestido centenas de andorinhas. Afastou os braços num gesto largo, como uma mulher em oração, e as aves partiram em revoada. Disse depois, e a sua voz era clara como o som da harpa:
- Ide, minhas filhas.
As andorinhas libertadas fugiram no céu do crepúsculo, desenhando com o bico e as asas indecifráveis sinais. O velhinho e a jovem mulher seguiram-nas um instante com o olhar, até que a caminhante disse ao eremita:
- Voltarão todos os anos, todos os anos lhes darás abrigo na minha igreja. Adeus Therapion.
E Maria foi-se embora pelo carreiro que não levava a sítio nenhum, como mulher a quem pouco importa que os caminhos acabem, pois conhece a maneira de andar no céu. O monge Therapion desceu à aldeia e, no dia seguinte, quando subiu para celebrar a Missa, a gruta das Ninfas estava coberta de ninhos de andorinhas. Voltaram todos os anos; iam e vinham pela igreja, atarefadas a dar de comer às crias ou a consertar as suas casitas de barro, e o monge Therapion parava muitas vezes de rezar para seguir com ternura as suas brincadeiras e os seus amores, pois aquilo que é interdito às Ninfas é consentido às andorinhas.


CONTOS ORIENTAIS
Marguerite Yourcenar

19 julho 2005

A maré inquieta da mudança

Li algures – deve ter sido num conto de fadas – que todos os homens estão secretamente apaixonados pela sua própria morte, perseguindo-a com o mesmo desespero de um amante contrariado.
Se Effie não me tivesse contado, com a voz de Marta, que Henry Chester era o Eremita, tê-lo-ia adivinhado quando ele voltou para casa naquela noite, a cambalear e com aquele brilho sinistro no olhar. Porque eu soube nesse momento que algures, na sua alma culpada, ele a tinha reconhecido – não, Effie não, a pobre criatura desorientada à espera que uma mais forte se apodere de si, mas Marta, a minha Marta, a palpitar de vida por detrás dos olhos de Effie… Sim, ele reconheceu-a, o velho Eremita, e foi atraído pela sedução gélida do sepulcro.
Naquela altura, eu conseguia ver coisas – ainda consigo, quando me sinto disposta a fazê-lo – e pressenti o seu desejo lúgubre e alimentei-o. Há ervas que turvam o espírito e raízes que o despertam, poções que abrem os olhos da alma e outras que dobram a realidade em formas delicadas como pássaros de papel… e há espíritos, sim, e espectros, acreditem ou não neles, que vagueiam pelos corredores do coração de um homem culpado à espera de uma oportunidade para renascerem.
Podia contar-lhes como vi a minha mãe insuflar vida num homem de barro, segredando estranhas memórias na sua cabeça sem cérebro, e do homem verdadeiro que enlouqueceu; ou da raiz que a bela rapariga comeu para falar com o amante morto, ou da criança doente que abandonou o corpo e voou para onde o pai jazia moribundo para sussurrar uma oração ao ouvido do velho… vi tudo isso e muito mais. Abanem a cabeça e acreditem na ciência se quiserem. Há cinquenta anos, a vossa ciência teria sido considerada magia. As coisas mudam, sabem, como a maré inquieta da mudança. Transporta-nos sobre as suas águas obscuras e secretas. A maré devolve os seus mortos, é uma questão de fé e de tempo. Tudo de que precisávamos, nós as duas, era de algum tempo. Eu, para a trazer para mais perto. Marta de tempo para recuperar forças.
Estávamos à espera.


VALETE DE COPAS E DAMA DE ESPADAS
Joanne Harris

15 julho 2005

Saber como era o mundo

O provável, Florita, era que a tua memória retivesse desses primeiros anos apenas o que a tua mãe te contara. Eras muito pequena para te lembrares dos jardineiros, das criadas, dos móveis forrados de seda e veludo, dos pesados cortinados, dos objectos de prata, ouro, cristal e porcelana pintada à mão que adornavam a sala e a casa de jantar. Madame Tristán fugia do esplendoroso passado de Vaugirard para não ver a penúria e as misérias da malcheirosa Praça Maubert, fervilhante de mendigos, vagabundos e gente de má vida, nem aquela Rua du Fouarre cheia de tabernas, onde tinhas passado uns anos de infância dos quais, esses sim, te recordavas muito bem. Andar abaixo e acima com bacias de água, andar abaixo e acima com os sacos de lixo. Receosa de encontrar, na escadinha empinada de degraus comidos da traça que rangiam, aquele velho bêbedo de cara violácea e nariz inchado, o tio Giuseppe, mão comprida que te sujava com o seu olhar e, às vezes, beliscava. Anos de escassez, de medo, de fome, de tristeza, sobretudo quando a tua mãe caía num estupor aparvalhado, incapaz de aceitar a sua desgraça, depois de ter vivido como uma rainha, com o marido – o seu legítimo marido perante Deus, pesasse a quem pesasse –, Don Mariano Tristán y Moscoso, coronel dos Exércitos do Rei de Espanha, morto prematuramente de uma apoplexia fulminante a 4 de Junho de 1807, quando tu tinhas apenas quatro anos e dois meses de idade.
Era também improvável que te lembrasses do teu pai. A cara cheia, as espessas sobrancelhas e o bigode encrespado, a tez levemente rosácea, as mãos com anéis, as longas patilhas grisalhas de Don Mariano que te vinham à memória, não eram os do pai de carne e osso que te levava ao colo ver as borboletas revolutear entre as flores do jardim de Vaugirard, e, às vezes, se dispunha a dar-te biberão, esse senhor que passava horas no escritório a ler crónicas de viajantes franceses pelo Peru, o Don Mariano que o jovem Simón Bolívar, futuro Libertador da Venezuela, da Colômbia, do Equador, da Bolívia e do Peru, vinha visitar. Eram os do retrato que a tua mãe expunha na mesa-de-cabeceira no andarzinho da Rua du Fouarre. Eram os dos óleos de Don Mariano que a família Tristán possuía na casa de Santo Domingo, em Arequipa, e que passaste horas a contemplar até te convenceres de que esse senhor bem-parecido, elegante e próspero era o teu progenitor.
Que teria acontecido se o coronel Don Mariano Tristán tivesse vivido muitos mais anos? Não terias conhecido a pobreza, Florita. Graças a um bom dote, estarias casada com um burguês e viverias porventura numa bela mansão rodeada de parques, em Vaugirard. Ignorarias o que é ir para a cama com as tripas retorcidas de fome, não saberias o significado de conceitos como discriminação e exploração. Injustiça seria para ti uma palavra abstracta. Mas, se calhar, os teus pais ter-te-iam dado instrução: colégios, professores, um tutor. Embora não fosse garantido: uma menina de boas famílias era educada unicamente para caçar marido e ser uma boa mãe e dona de casa. Desconhecerias todas as coisas que tiveste de aprender por necessidade. Bom, sim, não farias aqueles erros de ortografia que toda a vida te envergonharam e, sem dúvida, terias lido mais livros do que aqueles que leste. Terias passado os anos ocupada com o teu guarda-roupa, a cuidar das mãos, dos olhos, dos cabelos, da linha, fazendo uma vida mundana de saraus, bailes, teatros, lanches, excursões, coquetarias. Serias um belo parasita enquistado no teu bom casamento. Nunca terias sentido curiosidade por saber como era o mundo para além desse reduto no qual vivias confinada, à sombra do teu pai, da tua mãe, do teu marido, dos teus filhos. Máquina de parir, escrava feliz, irias à missa ao domingo, comungarias nas primeiras sextas-feiras e serias, aos quarenta e um anos, uma matrona roliça com uma paixão irresistível pelo chocolate e pelas novenas. Não terias ido ao Peru, nem conhecido a Inglaterra, nem descoberto o prazer nos braços de Olympia, nem escrito, apesar dos teus erros de ortografia, os livros que escreveste. E, evidentemente, nunca terias tomado consciência da escravidão das mulheres nem te teria ocorrido que, para se libertarem, era indispensável que elas se juntassem aos outros explorados a fim de levar a cabo uma revolução pacífica, tão importante para o futuro da humanidade como o aparecimento do cristianismo havia mil oitocentos e quarenta e quatro anos. «Foi melhor morreres, mon cher papa», riu-se, saltando da cama.


O PARAÍSO NA OUTRA ESQUINA
Mario Vargas Llosa

14 julho 2005

Quando eu nasci
















Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...

Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...


PEQUENO POEMA
Sebastião da Gama

13 julho 2005

A Salvação de Wang-Fô


Ling não nascera para correr mundo ao lado de um velho que se apoderava da aurora e captava o crepúsculo. Seu pai era mercador de ouro; sua mãe era filha única de um negociante de jade, que lhe deixara os bens amaldiçoando-a por ela não ser rapaz. Ling crescera numa casa donde a riqueza eliminava o acaso. Aquela existência cuidadosamente calafetada tornara-o tímido: tinha medo dos insectos, do trovão e do rosto dos mortos. Ao completar quinze anos, seu pai escolheu-lhe esposa e tomou-a entre as mais belas, pois a ideia de felicidade que oferecia ao filho consolava-o de haver atingido a idade em que a noite serve para dormir. A esposa de Ling era frágil como um caniço, infantil como o leite, doce como a saliva, salgada como as lágrimas.

Consumada a boda, os pais de Ling levaram a discrição ao ponto de morrerem, e o filho ficou só na casa pintada da cinábrio, na companhia da sua jovem mulher, que sorria constantemente, e de uma ameixeira que todas as primaveras se cobria de flores cor-de-rosa.
Ling amou aquela mulher de coração límpido como se ama um espelho que não embaciasse, um talismã que protegesse para sempre. Frequentava ascasa de chá para obedecer à moda e era moderadamente generoso para os acrobatas e bailarinas.

Certa noite, numa taberna, teve Wang-Fô por companheiro de mesa. O velho bebera para ficar em condições de pintar mais capazmente um bêbado; a cabeça pendia-lhe de lado, como se procurasse mediar a distância que separava a sua mão da chávena. A aguardente de arroz soltava a língua daquele artesão taciturno, e nessa noite Wang falava como se o silêncio fosse um muro e as palavras cores destinadas a cobri-lo. Graças a ele, Ling conheceu a beleza das caras dos bebedores esbatidas pelo vapor das bebidas quentes, o moreno esplendor das carnes desigualmente acariciadas pela língua das chamas e o delicado rosicler das nódoas de vinho que salpicavam as toalhas como pétalas murchas. Uma rabanada de vento rompeu a janela; a tempestade entrou pela sala. Wangf-Fô esgueirou-se para dar a contemplar a Ling o lívido zebrado do relâmpago, e Ling, maravilhado, perdeu o medo à trovada.



CONTOS ORIENTAIS
Marguerite Yourcenar

06 julho 2005

O passado andou atrás de mim


Este Verão correu muito depressa e o passado andou atrás de mim. Deu-me para recordar. Vivemos no interior de um tempo, diluído ou denso, que não nos abandona. Podemos fugir; mas não nos podemos esconder. E aquilo em que acreditamos faz a magia do que passou. Agora, com esta idade, aprendi que as coisas estão por dentro, e que adquirimos uma consciência infeliz perante as nossas próprias descobertas. Também aprendi que devemos amar o que não tem preço.

Finalmente estava só, finalmente não sentia o peso dela, nem a necessidade de fingir afeição. Esperei, anos e anos, o dia em que deixaria de ser forçado a viver na aflitiva desolação da sua companhia. Sou um homem a quem falhou muita coisa, sobretudo a coragem. Porém, nunca se me desvaneceu a lucidez de o reconhecer; mais: de me aceitar tal qual sou. O perdedor encontra na derrota uma secreta volúpia.

Durante muito tempo dediquei-me, através da alquimia das frustrações, a mitificar um passado, para mim a melhor fonte de felicidade. Inscrevia-me nessa lista enorme de pessoas que temem crescer, mas não o admitem. O que atenuou o meu desespero foi o poderoso desafio de viver além da conta e o desejo de ser único. Os homens estão divididos em mutilados e vis. Pertenço à primeira categoria, e faço uma tangente com a segunda. Nada espero; vivo preparado para tudo.

Estou marcado pelo tempo, pelas desilusões, pelo medo e pelas perdas. Há algo exterior a nós que somos obrigados a servir. Na minha idade já devia ter cuidado. Não com o corpo: sempre dele abusei; com aquilo que digo e, até, com aquilo que penso. Embora, presentemente, possa dar a minha versão dos factos sem ser incomodado pelo remorso. Às vezes sou eu; outras, exageradamente eu. A idade permite e desculpa os excessos, e torna desprezível qualquer forma de precaução. Mas com idade ocorre, também, todos os dias, uma indecisão nova e perturbadora, um problema e uma dúvida.

«Os homens que estão prontos para morrer é porque nunca estiveram prontos para viver», disseste, pouco tempo antes de te ires embora.

Lá estão as sombras, lá estão os gritos, lá estão os rostos. Impõem-se-me de uma forma quase dolorosa; e não consigo suprimi-los.


NO INTERIOR DA TUA AUSÊNCIA
Baptista-Bastos
2002

05 julho 2005

Estrangeira na minha própria terra


No meu caso, a infelicidade natural da infância era agravada por uma quantidade de complexos tão emaranhados que já nem consigo enumerá-los, mas felizmente não me deixaram feridas que o tempo não curasse. Uma vez ouvi dizer a uma famosa escritora afro-americana que desde criança se tinha sentido estranha na sua família e na sua terra; acrescentou que é o que sentem quase todos os escritores, mesmo que nunca saiam da sua cidade natal. É uma condição inerente a este trabalho, garantiu; sem o desassossego de sentir-se diferente não haveria necessidade de escrever. A escrita, ao fim e ao cabo, é uma tentativa de compreender as circunstâncias próprias e clarificar a confusão da existência, inquietudes que não atormentam as pessoas normais, só os inconformistas crónicos, muitos dos quais acabam convertidos em escritores depois de terem fracassado noutros ofícios. Esta teoria tirou-me um peso de cima: não sou um monstro, há outros como eu. Nunca vesti em parte alguma, nem na família, a classe social ou a religião que me tocaram em sorte; não pertenci aos bandos que andavam de bicicleta pela rua; os primos não me incluíam nas suas brincadeiras; era a rapariguinha menos popular do colégio e depois fui durante muito tempo a que menos dançava nas festas, mais por ser tímida do que por ser feia, prefiro supor. Fechava-me na capa do orgulho, fingindo que não me importava, mas teria vendido a alma ao diabo para ser do grupo, se por acaso Satanás se apresentasse com proposta tão atractiva. A raiz do meu problema foi sempre a mesma: incapacidade de aceitar o que a outros parece natural e uma tendência irresistível para emitir opiniões que ninguém deseja ouvir, o que espantou alguns potenciais pretendentes. (Não quero ser convencida, nunca foram muitos).
Mais tarde, durante os meus anos de jornalista, a curiosidade e o atrevimento tiveram algumas vantagens. Pela primeira vez fiz então parte de uma comunidade, tinha carta de alforria para fazer perguntas indiscretas e divulgar as minhas ideias, mas isso acabou bruscamente com o golpe militar de 1973, que desencadeou forças incontroláveis. Da noite para o dia vi-me estrangeira na minha própria terra, até que por fim tive de partir, porque não podia viver e criar os meus filhos num país onde imperava o medo e onde não havia lugar para dissidentes como eu. Naquele tempo a curiosidade e o atrevimento estavam proibidos por decreto.
Fora do Chile esperei durante anos que se reinstalasse a democracia para regressar, mas quando isso aconteceu não o fiz, porque estava casada com um norte-americano, a viver perto de São Francisco. Não voltei a residir no Chile, onde na verdade passei menos de metade da minha vida, embora o visite com frequência; mas para responder à pergunta daquele desconhecido sobre a nostalgia, devo limitar-me quase exclusivamente aos anos que lá vivi. E para o fazer devo ter por referência a minha família, porque pátria e tribo confundem-se na minha cabeça.


O MEU PAÍS INVENTADO
Isabel Allende

04 julho 2005

O sabor doce da chuva


Chovia no dia em que Lizzie nasceu. Não aqueles aguaceiros com que Deus abençoa os recém-nascidos, mas uma chuvada forte, ruidosa, uma cortina de água que transformou os relvados cuidadosamente aparados em esponjosas extensões de lama.
O deus da chuva estava zangado.

Quando construíram o beiral saliente do telhado para proteger as paredes caiadas da casa, não levaram em conta as suas fúrias. Ou se calhar levaram.
Talvez o deus da chuva não tivesse gostado de saber que tinham posto ali aquela espécie de barreira para impedi-lo de fazer sentir a sua fúria. Ou talvez não houvesse um deus da chuva.
Chandi encostou-se à parede e pensou nessas coisas todas enquanto lambia as gotas de chuva que pingavam do seu nariz.
Apesar de violenta, a chuva tinha um sabor doce.
As paredes brancas ficaram salpicadas de manchas cinzentas de humidade que costumavam permanecer, como uma leve acusação, até muito depois de as chuvas terminarem.
Não era apenas do nariz de Chandi que caíam pingos de chuva. Escorriam, como minúsculos afluentes, pela sua nuca, pelos lados da cabeça onde mergulhavam, indolentes, nas espirais das orelhas, para depois prosseguirem o seu curso e desembocarem nos regatos que lhe desciam pelas pernas.
Perguntou a si próprio se o escoadouro a seus pés iria dar a um rio que ia dar ao mar. Nunca tinha visto o mar, pois as imponentes montanhas mantinham-no, com eficácia, fora de vista, mas sabia da sua existência porque ouvira histórias acerca dele.
Por aqueles lados chamavam-lhe o lago que ruge. O ho gana pokuna.
A sua camisa, demasiado apertada, estava ensopada e colava-se à sua pele como a lesma à parede atrás dele. Afastou-a da barriga, mas quando a largou ela voltou ao mesmo lugar. Uma pequena poça de chuva acumulara-se no seu umbigo, que ele apertou para a água poder sair e reunir-se ao rio que corria para o mar.
Os calções eram grandes de mais. Estavam sempre a escorregar e ele sempre a puxá-los para cima. Haviam pertencido ao filho de Sudu Mahattaya, o que estava fora, em Inglaterra. Tinham quadrados vermelhos e verdes e um cinto a fingir.
Eram os seus calções preferidos e só queria não os ter vestido naquele dia. Receava que os quadrados vermelhos e verdes se diluíssem na chuva, como a cal das paredes. Nada disso acontecera ainda, mas mesmo assim estava preocupado.
Chandi lembrou-se da razão pela qual tinha vestido os seus calções preferidos. Era o dia do seu quarto aniversário, embora ninguém se tivesse lembrado, excepto ele.

O RAPAZ QUE VENDIA FLORES
Karen Roberts

01 julho 2005

Desbotados pelo tempo


As badaladas longínquas do relógio da sala despertaram-me sobressaltada. Já eram quatro da tarde e as cortinas de algodão grosso impediam a entrada de luz. As sombras projectavam-se nas paredes e no tecto do quarto. Percorri com o olhar aquelas paredes despidas. Só uma era adornada pela figura, em gesso, de um Cristo de rosto dorido e sulcado por pequenos fios de sangue. Uma mísula de madeira servia de suporte a uma vela acesa, cujo brilho cintilante se reflectia na imagem. Sobre a mesa-de-cabeceira havia uma coroa de flores de laranjeira e um missal com capa de nácar; no chão, uns sapatos de cetim.

Levantei-me, fui até à janela e afastei a cortina. Uma franja de luz mortiça resvalou sobre a cadeira onde repousavam o vestido de noiva e o véu de tule, atingidos assim pelos dardos furtivos do sol. Olhei pela janela. O céu do entardecer, diáfano e tranquilo, dava a sensação de uma calma absoluta. Em contrapartida, o meu espírito era um remoinho agitado por recordações melancólicas. Corri a cortina.
– Amanhã. Esta é a minha última noite em casa – murmurei, exalando um suspiro profundo.

O baú forrado com chapa de latão repousava a um canto. Abri-o, vasculhei no seu interior e retirei da penumbra uma pequena caixa de veludo cheia de retratos antigos, fotografias de família já amarelecidas. Fixei o olhar no retrato dos meus avós maternos, Heliodoro e Loreto. Ela exibia um vestido com franjas e lantejoulas e, a adornar-lhe a fronte, um diadema com pedras incrustadas. Os seus lábios mostravam um sorriso aberto e o olhar reflectia a vitalidade pujante da juventude. A seu lado, metido num sóbrio fato cinzento, o meu avô parecia uma sombra pálida e vacilante. Entre os dois, estava sentada a minha bisavó María, com um vestido comprido e austero e uma cabeleira de neve que contrastava com a frescura nacarada do seu rosto e o sorriso dos seus olhos. No seu regaço repousava María Dolores, a minha mãe, com um vestido da brancura de um cisne e uma roca na mão. Sorria com ar lânguido e olhos tímidos. Ao observá-los, percebi o vínculo que me unia àqueles seres desbotados pelo tempo.


BODA MEXICANA
Sandra Sabanero