31 janeiro 2006

O poema













O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas
Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento
No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas
(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas
E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo


LIVRO SEXTO
Sophia de Mello Breyner Andersen

26 janeiro 2006

A bela e o monstro


















A sua história com Tom desenhara-se como uma teia de contos de fadas. Contos de fadas mais ou menos transfigurados mas ainda identificáveis: o patinho feio que se transforma em cisne: a Cinderela e o príncipe. A jovem apagada que se apaixona pelo professor na faculdade, a mulher bonita que é companheira do escritor.
E depois a bela e o monstro... A mulher solitária e o homem mais velho, dominador, que tinha depressões terríveis e a destruía lentamente. O homem que à medida que se aproximava do centro, no mundo hermético dos seus livros, se ia transformando num monstro.
E ela matara o monstro.
Ou talvez essa fosse só outra maneira de contar a história. Era possível, tudo era possível.
Matara-o, talvez, para ser livre.
Porque as pessoas como Patrícia não matavam por razões fúteis como dinheiro, amor ou vingança.
Fora talvez aquele desejo de libertar-se, de perder-se no mundo, sentimento oceânico, fundir-se com o mundo, deixar diluir a sua identidade. Deixar de ser ela mesma. Ser outra pessoa qualquer, noutro lugar qualquer. Ser muitas pessoas em muitos lugares diferentes.
E, durante dois anos, vagueara de facto, com o dinheiro de Tom, por lugares onde nunca tinha estado com ele. Para descobrir que Londres não é a de John Dickson Carr e Veneza não é a de Henry James ou Tom Ripley. E sentira a falta de Tom de uma forma brutal, procurara-o noutros homens, de uma forma indistinta.
Quando o conhecera sentira isso também. Que o intuíra sempre nos namorados que tivera. Que desejara sempre o homem que escrevera aqueles livros incompreensíveis que tinham formado o seu mundo desde criança.
Depois de o matar acontecera de novo, continuara a procurá-lo nos homens com quem se relacionava. E que eram quase irreais, estranhamente parecidos uns com os outros, ultimamente chegara a uma fase nebulosa em que não distinguia as pessoas umas das outras.
Ao fim de dois anos resolvera voltar para a casa de Tom. Onde nunca estivera antes.
A casa com dupla personalidade. Cinzenta e nostálgica, com árvores nuas e arbustos que floriam no Inverno. E do outro lado uma parede áspera, esverdeada, sobre as falésias, o mar lá em baixo. O mar que entrava nas grutas que ficavam debaixo da casa, quando a maré subia. Tom falara-lhe nisso uma ou duas vezes, na velha casa onde vivera quando era menino, a casa que tinha água nas entranhas.
Falava muito pouco de si mesmo, ela não sabia nada dos seus pais, da sua vida de criança, mas aprendera com ele que nos livros é sempre o menino que escreve, o menino condenado a elaborar interminavelmente as suas primeiras histórias. Patrícia não questionara nunca aquilo que ele lhe ensinava, como se ela e tudo o que existia fizessem parte de um mundo criado por ele. Mas como, depois de outros homens, só com ele descobrira a sua sexualidade, o seu corpo, também fora com ele que aprendera a ver a realidade, e já não saberia vê-la de outra maneira.
Chegara à casa numa sombria tarde de Fevereiro. Vagueara pelo jardim, entre os arcos em ruínas e as plantas humedecidas pelo nevoeiro e depois entrara no átrio frio e impecavelmente limpo. Vagueara pelos corredores e pelas escadas, evitando os espelhos, sentindo com algum horror que o lugar lhe era familiar. Era quase como reler um livro que lera em criança e no qual encontrara algo de si mesma. Sempre fora demasiado narcisista para se interessar pelos livros onde não havia nada de si.
A sensação tornou-se mais forte ao entrar na biblioteca. Era uma divisão escura, as paredes inteiramente escondidas pelos livros. Havia uma lareira e uma secretária a um canto. Pareceu-lhe reconhecer aquela penumbra, aquele leve mistério que emanava da poeira dos livros, o pequeno bar junto à lareira. Depois percebeu. Conhecia-os dos livros de Tom.
Nessa noite dormira no quarto de Tom, na sua cama. Ao acordar sentira-se bem, pensara que talvez fosse mais simples assim, não sentir a sua ausência mas estar no seu lugar. Levantara-se e fora até à varanda, pequena e suspensa sobre o mar e deixara-se ficar ali, respirando o ar frio e tentando imaginar a paisagem escondida pelo nevoeiro.
– E passou-se um mês – disse Patrícia baixinho, enquanto fechava a porta do automóvel e deitava um olhar assustado à sombra negra da casa que se desenhava na escuridão.
Manhãs na cama, tardes cinzentas na biblioteca e à noite o barzinho na aldeia, embriagar-se quase até ao fim, voltar e dormir durante muito tempo.
Mas naquela noite não subiu para o quarto. Entrou na biblioteca, com passos vacilantes.
E, sem saber bem o que fazia, escreveu o primeiro conto fantástico.


A ÚLTIMA HISTÓRIA
Ana Teresa Pereira


24 janeiro 2006

Depois lembro-me outra vez

Vivia sozinho. Transformava velhos kilts em sobrecasacas e sentava-se a ler jornais ingleses.
Sim, é uma ideia, uma imagem que me assalta bruscamente e não me assusta porque já me habituei a estas coisas. Mas basta.
Uma vez tive nas minhas mãos um livro de Beckett. Numa página dizia assim: «sentado no mesmo sítio, mãos nos joelhos, como um grão-duque numa gaiola. As lágrimas correm-me pelas faces...»
Mas isto, esta outra imagem embora me represente inteiramente não é para aqui chamada.
Sou um grão-duque de sangue impuro.
Vestido com dois sobretudos porque tenho frio e ando sempre metido em várias camadas de roupa, e que ninguém, ninguém ouse nunca mais atormentar-me. Soltaria gritos de grão-duque! São gritos terríveis, finais!
Posso imaginar-me a abrir uma enorme boca sem dentes. Mas não sairia nenhum som, contentes? Vai já acabar, esta piada dos gritos. Pronto, acabou. Assim como a constelação do cisne. Não volto a falar disso tão depressa. Contentes? É melhor assim? Calculo que seja.
Então. Posso imaginar-me a abrir uma enorme boca sem dentes da qual não sairia nenhum som. Seria uma simples representação de horror autocomplacente, mais uma vez, acho eu. E teria momentaneamente a vantagem de me satisfazer, de me acalmar. Satisfazer a minha voracidade, e pode chamar-se voracidade ao sofrimento? Não sei. Uma inquietude violenta.
Acontece-me ir até ao aeroporto. Acho que já disse. Fico ali a ver os aviões que levantam para o Sal.
Como partir, como partir? Como voltar a casa dos actos fundadores? Quando sair do aeroporto reparo naquela gente toda à espera, no check-in. Será que esperam como eu, ou pelo menos será que esperam qualquer coisa no mesmo género? Acho que não.

Queria a quietude.


Ali na drogaria voltei a olhar para trás e na escura pureza do céu cruzavam-se plásticos vazios levados pelo vento. Rodopiavam alto, alto. Poisavam.
Não. A minha tristeza. Era vermelha e negra.
Não, também não faz sentido. Estou a dizer de mais ou de menos, mas a minha tristeza. Parecia um bicho vivo que se agarrava a mim a certas horas. As horas em que eu decidia que te amava? E depois, é verdade. Amava. Não, não a todas as horas. Mas a certas horas, sim. Um cavalo galopava para mim e estourava-me o coração. E eu sofria.
Vomitava, tinha vontade de vomitar porque reconhecia o mal.
Porque sabia que tinha de viver com ele numa trivialidade indecente, como toda a gente. Mais: que era isso que determinava a minha condição: a de um homem que ainda não morreu e tudo isto é simples, tão simples. Sou um homem que ainda não morreu.
E esta, é uma certeza de grão-duque, sim senhor.
Às vezes tudo toma a aparência daquilo que seria ainda uma outra coisa e age como uma falta, uma ausência, uma ofensa profunda, um romper - e no entanto não sei, não sei. Não sei definir, vigiar com firmeza. Manter a distância necessária com os meus próprios medos. Ser apenas um homem que ainda não morreu, não é verdade? Requer meios. Meios mentais, mas eu.
Fecho os olhos. Umas mãos pequenas e brancas passam por mim. Gordas e ardilosas pequenas pombas. São as mãos da minha avó paterna. Voltam a passar-me diante dos olhos mas esqueço logo. Esqueço tudo. Mas depois lembro-me outra vez.



VERMELHO
Mafalda Ivo Cruz

19 janeiro 2006

A inevitável enxurrada do amor













Deitada na areia, lutando sem sucesso contra a imagem de Roberto nessa noite de pousada, em que lhe dissera, acolhendo misticamente a respiração dela na boca :" Sou tão feliz consigo, Aldita!", procurava no mesmo passo esquecer a carta formal que recebera dele, uma carta comercial em papel timbrado, cujo sentido estrito lhe escapava. Alda julgava compreender, no entanto, o significado geral do acontecimento, embora se mantivesse ainda céptica sobre o significado que ele teria para si mesma. Agora padecia apenas de choque e humilhação, mas quem sabe no que tudo isso se poderia transformar depois das insistentes explicações do amante? "Temos o grato prazer de informar Vossa Excelência ", dizia o papel da Robimota Import/Export , " de que foi depositado na sua conta o cheque no valor total de cinquenta milhões de escudos. Muito penhorados pela gentileza e espírito humanitário de Vossa Excelência, colocamos à disposição dez por cento deste valor, símbolo da nossa gratidão e honorário de Seus serviços". E assinavam: Roberto Imperioso e Arnaldo Mota, e Alda não pôde deixar de se enternecer com as rubricas deles, tão semelhantes e desajeitadas que eram obviamente feitas pela mesma pessoa, uma pessoa que não se esforçava muito por esconder o embuste.

Alda subiu ao pontão para se dar ao meticuloso trabalho. Desde menina que se livrava, naquele mesmo banco, de todos os grãos de areia, antes de começar o difícil caminho para casa. Tirava do saco o colar e o relógio, prendia o cabelo, vaporizava a cara com água mineral. Estava nisto quando reparou que o velho ao lado de quem se sentara por distracção, se lamentava baixinho e chorava. Alda manteve-se entretida a limpar a areia dos pés, fingiu que não ouvia, mas o velho chegou-se mais a ela, determinado a contar-lhe.

Chorava por causa da Menina, a cadela que morrera atropelada. Tirou do bolso interior do casaco uma polaroid que mostrava um retriever dourado, meigo e reinadio, sentado num sofá de orelhas, o focinho apoiado no braço de couro escuro, olhando ternamente o mesmo velho que, descontraído se sentava no chão aos seus pés. Alda não teve pena, não soube sequer o que dizer. Despediu-se, levantou-se com o trabalho infinito de se escovar ainda inacabado. Ia procurar um banco com menos sofrimento. Sentados nas pedras do molhe, banhistas de todos os feitios olhavam para o mar. E mais à frente viu, nos degraus da escada de pedra, um casal de obesos, ela de cabeça encostada na montanha do ombro dele, ele de braço passado sobre a montanha do ombro dela, contemplando o seu crepúsculo. No carro, finalizando os seus arranjos, expulsando o último grão de areia renitente, ainda viu um par de jovens namorados a brincar em contraluz. Primeiro foi a menina a correr atrás dele, para lhe dar uma palmada forte na cabeça, depois o púbere lançou-se na corrida atrás dela, para a manietar e lhe dar um beijo no pescoço, a que ela se esquivava, correndo logo atrás dele para lhe bater mais uma vez e se deixar agarrar. Mas num instante, se liberta a ninfa, inesperadamente levanta os braços e dança, vulto escuro, esguio, cabelos compridos, e Alda repara que o ritmo dela é exactamente o que ela ouve tocar no rádio do seu carro. Sorrindo , a chave na ignição, imersa de novo, levada levada sim, flui na inevitável enxurrada do amor.

IMPÉRIO DO AMOR
Luísa Costa Gomes

16 janeiro 2006

Lágrimas ocultas



















Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...

Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!


OBRA POÉTICA
Florbela Espanca

13 janeiro 2006

Folhas de verde manso















Lucilina tinha cabelos verdes das folhas de lúcia-lima e olhos negros e brilhantes iguais a amoras. Por vezes, estava feliz e cantava com uma voz fina como se fosse uma flauta encantada. Vinha escutá-la um animal que não era cavalo de corrida, nem burro humilde, nem lince da Malcata, nem um gamo da serra de Peneda. Muito menos uma ave dos céus.
Estranha figura que a olhava com um olhar cheio de ternura branca e lavada.
Tinha o nome de Antenor.

Antenor morava só e triste (mas sempre com um sorriso, não sei porquê) num prédio muito alto, de muitos andares todos iguais e, no cimo de tal prédio, muitas antenas de televisão.
Pela rua corriam automóveis, bicicletas, com estranhos animais que com Antenor se pareciam.


Mas, depois, coisa estranha - Lucilina e Antenor assemelhavam-se, eram um e outro seres humanos, ele nem cavalo, nem burro, nem lince, nem gamo, nem ave do céu. Ela com cabelos verdadeiros sem a cor e o perfume de lúcia-lima.
Imaginem: casaram-se e convidaram animais para a festa. E os animais vieram muito contentes. Lucilina tinha um vestido bonito às risquinhas e Antenor um casaco mesmo bonito com uma grande gola.

Dou-vos minha palavra de honra que não sei como isto aconteceu. E ambos apareceram com chapéus iguais, como pessoas iguais. E felizes. E até com dois chapéus iguais, ambos olhos de amoras (ou amores?). Ao lado, sim, uma grande lúcia-lima - tão cheirosa a lúcia-lima de folhas verde manso!
E sobre a lúcia-lima, e afinal sobre eles, pairava um pássaro no céu. Eu penso que o pássaro, no céu azul, era cor-de-rosa e roxo: penso mas vocês é que dirão. Talvez o vejam de outras cores.
Antenor e Lucilina devem estar muito felizes.

O prédio grande deitou uma parte no chão, como a descansar e as antenas de televisão cresceram ao lado como flores. Tudo era humano e contente. E o pássaro no céu deixou crescer uma cauda muito longa e no peito levava ainda um bocado de chapéu (ou nuvem?) de pano de fato de Arlequim que antes usava Lucilina. Ia voar para longe, longe contar esta história. Pelas serras, pelos campos onde os animais vivam em paz, pelas cidades onde as casas não sejam grandes demais.

Vocês escutem-na, sobretudo na Primavera, logo no começo. Quando a terra ainda húmida da neve e das chuvas traz rebentos verdes, de muito verdes com todos os segredos. Onde também está o segredo dos cabelos e do chapéu de Lucilina e daquele seu amor que se chama Antenor.


LUCILINA E ANTENOR
Matilde Rosa Araújo

09 janeiro 2006

A sede de infinito














Sim, eles dois eram menos moços, mas mais unidos. Tinham um bote a motor que Forza aproximava da beira. Helena não sabia nadar, mas agitava-se na água e acenava quando o via. Ele vinha em direcção a ela, ela avançava até atingir a água pelo nível dos ombros, e ele em cima do bote. Roncava o bote, era como se a viesse buscar, e depois passava em tangente e atingia o largo. Ficava de costas. Ela gritava
— “Jaime, Jaime, estou aqui!”
De novo ele fazia a curva, traçava a tangente, ela saltava, uma onda pequena bastava para a engolir, ela de braços esticados, gritando aqui, aqui, ele se ia de novo, o motor resfolegava na água a uns metros. Não chegava a fazê-la entrar. Regressava no bote, chamava-a para ela puxar o bote. Ela corria à beira, empurrava o bote para fora, saltava e compunha o cabelo, como se naquela simulação de vai não vai no pequeno barco existisse um divertimento exaltante. Era uma bela mulher, despida lembrava um pombo, como outras lembram uma rã e outras uma baleia. Não era só a voz que lembrava um pombo, a chamar pelo barco, mas era também a perna, o seio, alguma coisa estava espalhada por ela que pertencia à família das columbinas. Talvez o cabelo vermelho, talvez a pele leitosa.
Os dois, ele e ela triunfantes, entendidos. A união deles era um triunfo. Ele com o bote, com ela e com a praia junto à casa, a cicatriz, era a perfeição do triunfo na vida. Essa sensação, por mais ingredientes desusados que tivesse, era tão forte que se transmitia a todos os elementos circundantes. A areia onde estávamos deitados até ela mesma seria uma emanação desse triunfo se o noivo não estivesse nostálgico vendo aquela alegria. Talvez Evita fosse injusta e o noivo mantivesse a mesma sede de resolução das coisas inextrincáveis, como antigamente tinha com as várias incógnitas e com o cálculo infinitesimal. Para quem tem a sede de infinito, é possível que tanto se comova com a dispersão das galáxias como com a rigidez do mármore. Helena deveria despertar no noivo, com aquela voz de pomba, a imagem do feminino absoluto, e daí até ao amuo com a sua realidade onde estava eu, Evita, ia um passo — disse Eva Lopo. O noivo não ria nem para mim nem para o mar, só conseguia rir para o capitão. O noivo pegou no bote, amarrou o bote, ficámos na praia amarrando tudo isso, para que eles pudessem ir sós até à entrada de casa. Ele adiante com a toalha ao ombro, em grandes passadas, ela mais atrás, com um saco. Ela sentou-se na areia para calçar as sandálias, ele já ia no alto dum pequeno morro. Virou-se, assobiou por ela com o tal assobio tremido, de ordem e chamamento. Ela pegou no saco e correu, escorregando e caindo. Aproximou-se da estrada e dele também. A união deles não se revestia do modelo que Evita havia colhido nas salas de cinema de Lisboa com imensa fita francesa, com casais cheios de distúrbio, e no entanto, surpreendentemente, Helena e Forza tinham uma alegria doméstica triunfante, tudo neles triunfava como um arco erigido à porta duma casa. Entraram pela portinha de ferro, os mainatos vieram, Helena acenou da porta com o cabelo molha-do, a fieira dos dentes luziu e pareceu, na atmosfera do meio-dia, um reclame ao elixir estival da felicidade. Entraram na porta de casa, fecharam-na, no ar havia harmonia — como um pêndulo bom vai, vem, promete. Lembro-me.


A COSTA DOS MURMÚRIOS
Lídia Jorge

06 janeiro 2006

Aquele que partiu

















Aquele que partiu
Precedendo os próprios passos como um jovem morto
Deixou-nos a esperança.
Ele não ficou para connosco
Destruir com amargas mãos seu próprio rosto
Intacta é a sua ausência
Como a estátua de um deus
Poupada pelos invasores de uma cidade em ruínas
Ele não ficou para assistir
À morte da verdade e à vitória do tempo
Que ao longe
Na mais longínqua praia
Onde só haja espuma sal e vento
Ele se perca tendo-se cumprido
Segundo a lei do seu próprio pensamento
E que ninguém repita o seu nome proibido.


OBRA POÉTICA
Sophia de Mello Breyner Andresen

05 janeiro 2006

Há de tudo neste mundo...

O elevador ainda não estava bem cheio quando ela entrou, houve logo quem lhe arranjasse lugar. Levava uma criancinha ao colo muito limpa e de moleirinha ao léu. Com o pelinho ainda muito tenro e ralo.
A mulher falava por falar sem ninguém lhe puxar pela língua; estava para contar a sua vida, quem quisesse que a ouvisse.
À sua frente ia um coxo elegante, outro... que desviava os olhos dela; à sua direita um homem comum e à sua esquerda uma mulher sem categoria, chupada e triste, destas que fazem o tirocínio dos hospitais. Ia muito mais gente, que não importa descrever. Toda aquela gente que já tinha atirado com as ideias de elegância às malvas ou que nunca as tinha tido se sentia distraído com a mulher. Não era um espectáculo de todos os dias. Robusta, tostada, feia e boçal, vinha de Monsanto a pé. E com o filho nos braços. Dizia que não sabia nada disto cá de Lisboa, que primeiro a tinham mandado para um elevador e depois a tinham mandado para outro...
O vizinho da direita pergunta-lhe então que é que pretendia, se era ir para a Misericórdia se para o Instituto.
- Para o tribunal, para o tribunal! responde logo ela.
- Para o Torel?
- Isso, isso, para a polícia! E com todo o desembaraço levanta um joelho para sentar a criança e deita abaixo a roupa de um ombro cheio de nódoas negras.
- E bateu-me mais aqui! (numa anca). E na cabeça e por toda a banda! Se não me tiram a criança dos braços ele matava-a.
- É o pai! Mas há-de perfilhá-lo. (Palavra aprendida na gíria dos tribunais). E pagar-lhe o sustento!
- Se ele puder... dizia-lhe o vizinho da direita, entendido naturalmente.
- Não, que não pode! Ganha doze escudos por dia. Partiu-me um pau no lombo e não ia ainda buscar outros? Se ele já matou a própia mãe à pancada!
- Que tempo tem? pergunta-lhe um dos passageiros indicando a criança.
- Três mesinhos, é um menino.
E tornava: - mas ele já está na cadeia, há quatro dias que o meteram lá!
Já todos se iam cansando ou envergonhando de ouvir a mulher. Diz-lhe ainda uma criatura da ponta: - há de tudo neste mundo...
- Olha um cigarrinho tão bom! brada de súbito a queixosa olhando para baixo de um banco.
Nisto pára o elevador. Todos se desinteressam dela. Mas a pé e perna, a mulher resoluta pergunta o seu caminho e segue-o.
Havia dias também em que umas caras gastas pareciam voltar para baixo aborrecidas da vida. A morgue, a prisão e o hospital justificavam-nas.

Em compensação os rapazes e as raparigas elegantes que andam nos estudos e se aborrecem das sebentas e dos mestres, mas são airosos e bem tratados, distraíam-nos.
A gente que anda de papel selado na mão também não pesa. É do comércio geralmente e tem pressa, não faz queixas.
As mulheres dos sacos de oleado com rabos de peixe e rama de hortaliça de fora, muito caladas, atestam-nos que a vida é sempre a mesma. E o nariz do Figueira quando aparece liga em espírito Xabregas ao Campo Santana... A cidade está toda ali! Ali, como em qualquer outra parte.
À noitinha reduzido a pouco todo aquele movimento, apetece chegar-se cada um para o seu canto e fechar um bocadito os olhos. Mas não é isso que faz, olha para os bicos dos pés.


O LAVRA
Irene Lisboa
excertos do texto com o mesmo título incluído no livro Esta Cidade!

03 janeiro 2006

Um Coração de Louça


















Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.

AUTO-RETRATO
Natália Correia