30 setembro 2005

Lágrima de Preta





















Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio



LÁGRIMA DE PRETA
António Gedeão

28 setembro 2005

Uma dor diabólica

Há qualquer coisa de belo na alegria, na ausência de dor, nesses dias suportáveis e amainados em que nem a dor nem o prazer ousam gritar, em que tudo sussurra e anda de mansinho em bicos de pés. Mas comigo, infelizmente, acontece que é precisamente essa alegria que eu menos tolero; após algum tempo ela torna-se insuportável, de odiosa e repugnante, forçando-me a fugir, de desespero, para outras temperaturas, porventura trilhando caminhos de luxúria, mas se necessário for também de sofrimento. Quando passo algum tempo sem alegrias nem penas, respirando a sofribilidade morna e insípida dos chamados dias bons, nasce na minha alma de criança um tormento, uma revolta tão inflamada, que atiro a enferrujada lira da gratidão ao beatífico rosto do deus meio adormecido da satisfação, e preferia uma dor francamente diabólica fervilhando dentro de mim a esta aprazível temperatura ambiente. Irrompe então em mim uma feroz avidez de sensações fortes, uma raiva contra esta vida descolorada, banal, estandardizada e esterilizada, e um avassalador desejo de arranjar qualquer coisa, um armazém ou uma catedral, sei lá, ou eu próprio, pôr-me a fazer disparates arrojados, arrancar as perucas de uns tantos ídolos venerados, proporcionar a uns tantos rapazinhos estudantes em revolta o ansiado salto ate Hamburgo, seduzir uma miúda ou torcer o pescoço a uns tantos representantes da ordem universal burguesa. É que não havia coisa que eu mais detestasse, abominasse e execrasse no mais íntimo do meu ser: essa beatitude, essa saúde, esse bem-estar, esse acalentado optimismo do burguês, essa cultura farta e próspera do medíocre, do normal do mediado.


O LOBO DAS ESTEPES
Hermann Hesse

23 setembro 2005

O velho Garrinchas

"De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis por se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste oficio, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse doutra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe em cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não.

Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta, passava das quatro. E, como anoitecia cedo, não havia outro remédio sento ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-lhe lá.

E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.

Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.

Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.

Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois dum clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos, é que não.

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.

Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aquela ajuda, olhou o altar.Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.

- Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também.

Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia.

Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila!
Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.

- É servida?

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.

- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia dum patriarca. - A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José"


CONTOS
Miguel Torga

22 setembro 2005

Génesis
















De mim não falo mais: não quero nada.
De Deus não falo: não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.

Nem de existir, que é a vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver, que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.

Por mais justiça... – Ai quantos que eram novos

em vão a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade...Ó transfusão dos povos!

Não há verdade: O mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais, todos mentiram.


OBRA POÉTICA
Jorge de Sena

21 setembro 2005

A obrigação de não esquecer

















O privilégio de ter sobrevivido aos campos de concentração nazis, deu-me a obrigação de viver para denunciar as atrocidades cometidas.

Simon Wisenthal
1908-2005

19 setembro 2005

Só se vê bem com o coração

- Ai! - exclamou a raposa - ai que me vou pôr a chorar...
- A culpa é tua - disse o principezinho.- Eu bem não queria que te acontecesse mal nenhum, mas tu quiseste que eu te prendesse a mim...
- Pois quis - disse a raposa.
- Mas agora vais-te pôr a chorar! - disse o principezinho.
- Pois vou - disse a raposa.
- Então não ganhaste nada com isso!
- Ai isso é que ganhei! - disse a raposa. - Por causa da cor do trigo...
Depois acrescentou:
- Anda, vai ver outra vez as rosas. Vais perceber que a tua é única no mundo. Quando vieres ter comigo, dou-te um presente de despedida: conto-te um segredo.
O principezinho lá foi ver as rosas outra vez.
- Vocês não são nada parecidas com a minha rosa! Vocês ainda não são nada - disse-lhes ele. - Não há ninguém preso a vocês e vocês não estão presas a ninguém. Vocês são como a minha raposa era. Era uma raposa perfeitamente igual a outras cem mil raposas. Mas eu tornei-a minha amiga e, agora, ela é única no mundo.
E as rosas ficaram bastante incomodadas.
- Vocês são bonitas, mas vazias - ainda lhes disse o principezinho. - Não se pode morrer por vocês. Claro que, para um transeunte qualquer, a minha rosa é perfeitamente igual a vocês. Mas, sozinha, vale mais do que vocês todas juntas, porque foi a que eu reguei. Porque foi a ela que eu pus debaixo de uma redoma. Porque foi ela que eu abriguei com o biombo.. Porque foi a ela que eu matei as lagartas (menos duas ou três, por causa das borboletas). Porque foi a ela que eu vi queixar-se, gabar-se e até, às vezes, calar-se. Porque ela é a minha rosa.
E então voltou para o pé da raposa e disse:
- Adeus...
Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... repetiu o principezinho, para se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...
- Eu sou responsável pela minha rosa... repetiu o principezinho, para se lembrar.



O PRINCIPEZINHO
Antoine de Saint-Exupéry

16 setembro 2005

O tamborilar da chuva

Prenderam-me em Novembro de 1591 e, durante quase onze meses, não falei a mais ninguém para além do guarda prisional. Nem fui informado das acusações que pendiam sobre mim nem autorizado a ler fosse o que fosse, e a minha janela, uma fenda mesquinha na pedra nuca, estava tão alta que não me permitia espreitar para a cidade lá em baixo. A esperança agarrava-se às recordações de Tejal, e por vezes, também, ao tamborilar da chuva, a qual me lembrara que havia um mundo onde os meus carcereiros não tinham poder. Uma vez, durante uma tempestade, pus-me a lamber umas gotas que escorriam pela parede. Souberam-me ao Riacho do Moinho e, por uns instantes, os meus pensamentos chapinharam em toda a minha liberdade de criança, mas muitas vezes penso que acabaram por me trair; nessa mesma noite, Deus foi-me roubado, e, ao acordar, senti-me mais sozinho do que alguma vez já estivera, expulso do mundo sobre o qual Ele sempre velara. Nunca mais haveria de sentir os dedos dos meus pés afundarem-se na terra vermelha do arrozais ou saber se Tejal já dera à luz um rapaz ou uma menina.
Silenciosamente, pedi perdão ao meu pai por não fazer a vida melhor que ele desejara para mim, e fui buscar o precioso instrumento feito de ferrugem e ponta acerada que escondera no fundo do penico havia umas semanas. Farejando-lhe o odor sagrado de desígnio metálico, confiante na derrota como a minha última amiga, sulquei com ele um braço e depois o outro. O meu retrato final havia de ser quente e desenhado no meu próprio sangue, como se impunha.
Percebi que era um homem amaldiçoado quando nem sequer, apesar das minhas preces, conseguia afundar o prego o suficiente para fazer o milagre de que precisava. Mesmo assim, sangrei bastante, e o rio que fica além do Sabat levou-me para longe na sua corrente. Pousando a cabeça na verdade das suas águas, sonhei com um horizonte de pinheiros e cedros muito ao longe a ocidente, nas margens do rio Jordão.
Tejal seria informada da minha morte; agora ficaria livre para casar com outro homem. Isso valia bem o preço que eu tinha de pagar.
Acordei sobressaltado e dei com um padre que nunca tinha visto antes a atar-me os braços, suando, com umas cordas grosseiras. Pedi-lhe que me deixassO tambolirar e em paz, mas ele continuou o seu trabalho e atirou-me para o catre com um resmungo de repugnância. Tentando impedir a queda, puxei-lhe pelo rosário, e as contas espalharam-se pelo chão.
- Mulato fi de puta! – gritou-me. – Ainda hás-de confessar!
Não, pensei na voz da criança que já fora. Mesmo não sendo quem já fui, a minha alma ainda tem cola suficiente para não me deixar assim tão facilmente.
Dois guardas puseram-se de quatro – homens transformados pela encantação do meu desprezo em ursos que gatinhavam. Por qualquer razão que não descortino, comecei a pintar listas de tigre na cara com sangue dos meus pulsos. Pouco depois, lembrei-me da alcunha que Wadi me dera e pensei: Sim, tenho de me tornar noutra espécie de ser, um ser feroz; senão, ponho-me a dizer o nome de outras pessoas e condeno-as a um destino igual ao meu.


GOA OU O GUARDIÃO DA AURORA
Richard Zimler

13 setembro 2005

Original é o poeta!















Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutro pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse um abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever um sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte faz
devorar um jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chegar ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse uma mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.

Obra Poética
Ary dos Santos

08 setembro 2005

Segredo

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...

ANTOLOGIA POÉTICA
Miguel Torga


Sempre adorei a suave inocência deste poema do Miguel Torga. Hoje de manhã, veio-me à memória enquanto lia a noticia sobre o Daniel, assassinado por aqueles que deviam ser os primeiros a embalá-lo no colo com palavras de amor.
Voa com os anjos, pequenino!

06 setembro 2005

O Desafio do Vizinho

Novata que sou nestas andanças, o vizinho do lado resolveu desafiar-me com umas perguntas que embora não sendo dificeis, são de resposta complicada, porque complicada é a escolha de gostos e costumes contados pelos dedos de uma mão.




Ora então, cá vão as respostas

As 5 coisas que me tiram do sério:
Maus-tratos infantis;
Todo e qualquer tipo de racismo;
Gente que chega sempre atrasada;
A estupidez natural de algumas personagens cá do burgo;

As derrotas do meu amado Sporting

Gosto especialmente:
da minha Família;
dos Livros que já li e dos que me faltam ler;
dos meus Cães e dos cães dos outros;
Do barulho inquieto do Mar;
Do cheiro doce da Chuva

5 Álbuns:
When I Look In Your Eyes - Diana Krall;
Público - Adriana Calcanhoto;
Vida Malvada - Xutos & Pontapés
The Intimate Ella - Ella Fitzgerald;
Jagged Little Pill (Acoustic) - Alanis Morissette

5 canções:
What A Wonderfull World - Louis Armstrong

Loucos de Lisboa - Ala dos Namorados
Deixa-te ficar na minha casa - Filarmónica do Gil
Cavaleiro Andante - Rui Veloso
I Will Survive - Gloria Gaynor (OK podem rir à vontade)

5 álbuns no IPod:
Não (i)posso responder, porque não tenho um...mas tenho esperança


Isto passa para:
António
Ivar
HM
Wilton
Patita

Passear os dias

Fausto Bendito Ventura fez-se alfarrabista por distracção. Orgulhava-se de nunca ter trabalhado na vida. Saía de manhã cedo a passear pela Baixa, malembe-malembe, muito aprumado no seu fato de linho, chapéu de palha, laço e bengala, cumprimentando amigos e conhecidos com um leve toque do dedo indicador na aba do chapéu. Se acaso se cruzava com alguma senhora do seu tempo, dedicava-lhe a luz de um sorriso galante. Soprava: Bom dia, poesia. Atirava piropos apimentados às empregadas dos bares. Conta-se (contou-me Félix) que um dia um invejoso o provocou: «Afinal, o que faz o senhor nos dias úteis?» A réplica de Fausto Bendito, Todos os meus dias são inúteis, cavalheiro, eu os passeio, ainda hoje desperta palmas e gargalhadas entre o magro círculo de antigos funcionários coloniais que, nas tardes exânimes da gloriosa Cervejaria Biker, persistem em eludir a morte, jogando cartas e contando casos. Fausto almoçava em casa, dormia a sesta, e depois sentava-se à varanda, a fruir a fresca brisa da tarde. Naquela época, antes da independência, ainda não havia o muro alto, a separar o jardim do passeio, e o portão estava sempre aberto. Aos clientes bastava galgar um lance de escadas para ter livre acesso aos livros, pilhas e pilhas deles, dispostos ao acaso no forte soalho do salão. Partilho com Félix Ventura um amor (no meu caso sem esperança) pelas palavras antigas.
A Félix Ventura quem o educou neste sentimento foi, primeiro, o pai, Fausto Bendito, e a seguir um velho professor, dos primeiros anos do liceu, sujeito de modos melancólicos, alto, e de tal forma delgado que parecia caminhar sempre de perfil, como uma gravura egípcia. Gaspar, assim se chamava o professor, comovia-se com o desamparo de certos vocábulos. Dava com eles abandonados à sua sorte, nalgum lugar ermo da língua, e procurava resgatá-los. Usava-os com ostentação e persistência, o que consternava uns e desconcertava outros. Creio que triunfou. Os seus alunos começaram por utilizar esses vocábulos, primeiro por troça, e a seguir como uma gíria íntima, uma tatuagem tribal, que os fazia distintos da restante juventude. Hoje, assegurou-me Félix, são ainda capazes de se reconhecerem uns aos outros, mesmo quando nunca se viram antes, às primeiras palavras. «Ainda tremo de cada vez que ouço alguém dizer edredão, um galicismo hediondo, em vez de frouxel, que a mim me parece, e estou certo que você concordará, palavra muito bela e muito nobre. Mas já me conformei com sutiã. Estrofião tem uma outra dignidade histórica. Soa, todavia, um pouco estranho – não concorda?»


O VENDEDOR DE PASSADOS
José Eduardo Agualusa

05 setembro 2005

Um imenso desperdiçar de gente


Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos


Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino...


RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA
Sophia de Mello Breyner Andresen

02 setembro 2005

A vida é água a correr

Venho da terra assombrada
do ventre de minha mãe
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém

Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci

Trago boca pra comer
e olhos pra desejar
tenho pressa de viver
que a vida é água a correr



Venho do fundo do tempo
não tenho tempo a perder
minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada

Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham
nem forças que me molestem
correntes que me detenham

Quero eu e a natureza
que a natureza sou eu
e as forças da natureza
nunca ninguém as venceu

Com licença com licença
que a barca se fez ao mar
não há poder que me vença
mesmo morto hei-de passar
com licença com licença
com rumo à estrela polar


FALA DO HOMEM NASCIDO
António Gedeão

01 setembro 2005

Só voa quem se atreve a fazê-lo!

A gaivota estendeu as asas. Os projectores banhavam-na de luz e a chuva salpicava-lhe as penas de pérolas. O humano e o gato viram-na erguer a cabeça de olhos fechados.
- A chuva, a água. Gosto! – grasnou.
- Vais voar – miou Zorbas.
- Gosto de ti. És um gato muito bom – grasnou ela aproximando-se da beira do varandim.
- Vais voar. Todo o céu será teu – miou Zorbas.
- Nunca te esquecerei. Nem aos outros gatos – grasnou já com metade das patas de fora do varandim, porque, como diziam os versos de Atxaga, o seu pequeno coração era dos equilibristas.
- Voa! – miou Zorbas estendendo uma pata e tocando-lhe ao de leve.
Ditosa desapareceu da sua vista, e o humano e o gato temeram o pior. Caíra como uma pedra. Com a respiração em suspenso assomaram as cabeças por cima do varandim, e viram-na então batendo as asas, sobrevoando o parque de estacionamento, e depois seguiram-lhe o voo até às alturas, até mais para além do cata-vento de ouro que coroava a singular beleza de São Miguel.
Ditosa voava solitária na noite de Hamburgo. Afastava-se batendo as asas energicamente até se elevar sobre as gruas do porto, sobre os mastros dos barcos, e depois regressava planando, rodando uma e outra vez em torno do campanário da igreja.
- Estou a voar! Zorbas! Sei voar! – grasnava ela, eufórica, lá da vastidão do céu cinzento.
O humano acariciou o lombo do gato.
- Bem, gato, conseguimos – disse ele suspirando.
- Sim, à beira do vazio compreendeu o mais importante – miou Zorbas.
- Ah, sim? E o que é que ela compreendeu? – perguntou o humano.
- Que só voa quem se atreve a fazê-lo – miou Zorbas.
- Suponho que agora te estorva a minha companhia. Espero-te lá em baixo – despediu-se o humano.
Zorbas permaneceu ali a contemplá-la, até que não soube se foram as gotas de chuva ou as lágrimas que lhe embaciaram os olhos amarelos de gato grande, preto e gordo, de gato bom, de gato nobre, de gato do porto.


HISTÓRIA DE UMA GAIVOTA E DO GATO QUE A ENSINOU A VOAR
Luis Sepúlveda