30 junho 2005

O que a vida já regulamentou


De repente abriu os olhos. Vi-me reflectido nas suas pupilas cinzentas, de brilho inteligente. Ordenava a minha imagem entre as suas lembranças.
— Tu és Paquito, o filho da leiteira.
— Não, não sou Paquito.
— Não te ouço, filho. O que é que dizes?
— Não, don Angel, não sou Paquito — disse eu subindo o tom.
— Então és Miguelillo. Já estava na hora de vires, rapaz.
— Don Angel, lembra-se do seu irmão Gerardo?
Então o olhar do velho trespassou a minha pele, percorreu cada um dos meus ossos, saiu ao portão, à rua, subiu e desceu lombas, visitou cada árvore, cada gota de azeite, cada sombra de vinho, cada rasto apagado, cada serenata cantada, cada touro sacrificado na hora fatídica, cada pôr do Sol, cada tricórnio da guarda civil que se colocou, insolente, diante da herdade, cada notícia vinda de tão longe, cada carta que deixou de chegar porque é assim a vida, carago, cada silêncio que se foi prolongando até tornar certeza o absoluto da distância.
— Gerardo... um a quem chamavam o Cobra?
Fugidio, o meu avô. Temido e buscado. Mudava de pele e de nomes para abrigar o mesmo amor insurrecto.
— Sim, don Angel. Chamavam-lhe assim.
— O meu irmão... um que foi para a América?
Sim. Um que foi para a América. Um entre tantos que entraram para os barcos cheios de esperança. Espanhóis que, quatro séculos depois da invasão armada da América, partiram à procura da paz, e foram bem-vindos e encontraram madeira para erguer as suas casas, nobre cera de laboriosas abelhas para polir as suas mesas, vinhos secos para moldar os novos sonhos e uma terra que lhes disse: uma pessoa é de onde melhor se sente.
O meu avô. Um que foi para a América. Um que atravessou o mar e do outro lado encontrou ouvidos receptivos que esperavam a sua voz: "O contrato social é uma infâmia dos inimigos do homem. A natureza orienta-nos para solucionarmos os nossos problemas dialogando de forma fraterna. Não se pode regulamentar o que a vida já regulamentou", dizia o meu avô quando eu era criança e o acompanhava aos serões do Socorro Obrero.
— Sim, Don Angel. Um que foi para a América.
— Tu és o meu irmão?
De muito cá de dentro, o meu avô impelia-me a responder-lhe: "Sim, diz-lhe que sim e abraça-o. Todos os homens são irmãos e é no desamparo da velhice que afloram as eternas e frágeis verdades."
— Não, don Angel, o seu irmão Gerardo era meu avô.
O semblante do velho ficou sério. Ajeitou-se na cadeira, pôs as nervudas mãos nos joelhos e examinou-me dos pés à cabeça, de ombro a ombro. Pedir-me-ia porventura um papel? Ou que abrisse o peito e lhe mostrasse o coração?
— Maria! — chamou.
Da casa saiu uma velha vestida de luto carregado. Tinha o cabelo prateado atado num carrapito e ficou a olhar para mim com expressão carinhosa. Então, depois de pigarrear, Don Angel disse o mais belo poema com que a vida me premiou, e eu soube que finalmente se fechara o círculo, pois estava no ponto de partida da viagem começada pelo meu avô. Don Angel disse:
— Mulher, traz vinho, que chegou um parente da América.


PATAGÓNIA EXPRESS
Luis Sepúlveda

29 junho 2005

A vingança


A casa ficou habitada por seres que não interagiam uns com os outros. Por seres incapacitados de se verem, de se ouvirem, de se amarem. Por seres que se rejeitavam com a crença de pertencerem a culturas muito diferentes. Nunca souberam que a verdadeira razão era uma que ninguém via. Que a rejeição provinha do subsolo, do choque de energias entre os restos da Pirâmide do Amor e a casa que tinham construído em cima. Da rejeição total entre as pedras que formavam a pirâmide e as que formavam a casa. Do desgosto da pirâmide que não esperava senão o momento adequado para tirar de cima de si as pedras alheias e assim recuperar o seu equilíbrio. De igual forma reagiam os moradores da casa, com a diferença de que para Citlali recuperar o seu equilíbrio anterior não significava tirar umas pedras de cima de si, mas sim levar a cabo a sua vingança. Felizmente para ela, não teve de esperar muito tempo. Isabel deu à luz um belo menino loiro. Citlali não saiu do seu lado, e assim que a parteira recebeu o menino ela pegou nele ao colo para o levar a Rodrigo e, fingindo um tropeço, deixou-o cair. A criança partiu logo a cabeça. Com o corpo da criança, caíram ao chão as linhas da mão de Citlali. O seu destino já estava marcado na terra, no ar, nos gritos e lamentos de Isabel. Já não lhe pertencia. Rodrigo agarrou-a pelos cabelos e tirou-a do quarto aos empurrões, por entre a confusão que reinava naquele momento. Tirou-a antes que alguém tivesse tempo de reagir contra ela. Não podia permitir que a maltratassem mãos alheias. O único que a podia matar dignamente era ele. Citlali não tinha escapatória, ele sabia-o perfeitamente, e sabia também que aquele corpo tão percorrido, tão conhecido, tão beijado, tão desejado, merecia uma morte amorosa. Com grande dor, Rodrigo sacou dum punhal e, tal como vira fazer a alguns sacerdotes durante os sacrifícios humanos, abriu o peito de Citlali, pegou no coração com as mãos e beijou-o várias vezes antes de finalmente o arrancar e lançar para longe. Foi tudo tão depressa que Citlali não sentiu o menor sofrimento. O seu rosto reflectia muita tranquilidade, a sua alma descansava finalmente em paz, pois conseguira concretizar a sua vingança. O que ela nunca soube foi que aquela vingança não consistiu em ter matado o loiro recém-nascido, mas sim o ter-se tornado merecedora da morte. Conseguiu com a sua morte o que desejara da primeira vez que vira Rodrigo: que uivasse de dor.


A LEI DO AMOR
Laura Esquivel

28 junho 2005

Pedra Filosofal

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança


MOVIMENTO PERPÉTUO
António Gedeão
1956

27 junho 2005

Quase nada


De você sei quase nada
Pra onde vai ou porque veio
Nem mesmo sei
Qual é a parte da tua estrada
No meu caminho

Será um atalho
Ou um desvio
Um rio raso
Um passo em falso
Um prato fundo
Pra toda fome
Que há no mundo

Noite alta que revele
Um passeio pela pele
Dia claro madrugada
De nós dois não sei mais nada

De você sei quase nada
Pra onde vai ou porque veio
Nem mesmo sei

Qual é a parte da tua estrada
No meu caminho
Será um atalho
Ou um desvio
Um rio raso
Um passo em falso

Um prato fundo
P’ra toda fome
Que há no mundo

Se tudo passa com se explica
O amor que fica nessa parada
Amor chega sem dar aviso
Não é preciso saber mais nada


Zeca Baleiro

24 junho 2005

Nada muda.


Devia esperar aquilo. De certo modo tinha estado à espera que aquilo acontecesse, já tinha imaginado essa rejeição anos antes. Apesar disso, magoou-me; depois da morte da Mãe e da partida de Adrienne, tinha com certeza o direito de esperar uma resposta.
As coisas poderiam ter sido diferentes se eu fosse rapaz. GrosJean, como a maior parte dos homens da ilha, queriam filhos rapazes: filhos para trabalharem no estaleiro, para cuidarem da sepultura familiar. As raparigas com todas as despesas que acarretava, não tinham qualquer interesse para GrosJean Prasteau. Uma filha primogénita já fora suficientemente mau; uma segunda, quatro anos mais tarde, tinha posto fim ao pouco que restava da intimidade dos meus pais. Cresci tentando reparar o desapontamento que causara, usando o cabelo curto para lhe agradar, evitando a companhia de outras raparigas para merecer a sua aprovação. Em certa medida tinha resultado: às vezes deixava-me acompanhá-lo na pesca da perca na rebentação ou levava-me até aos bancos de ostras com os forcados e os cestos. Eram para mim momentos preciosos, que eu não deixava escapar quando às vezes a minha mãe e Adrienne iam juntas a La Houssinière; momentos guardados avidamente em segredo.
Ele falava comigo nessas alturas, mesmo quando já não falava com a minha mãe. Mostrava-me os ninhos das gaivotas e os areais ao largo de La Jetée onde as focas regressavam todos os anos. Às vezes encontrávamos coisas trazidas pelo mar para a praia e levávamo-las para casa. E, uma vez por outra, muito esporadicamente, contava-me histórias e velhos ditados das ilhas. Tudo retorna. Era o seu preferido.
- Lamento. – Era a voz de Flynn. Devia ter-se aproximado por detrás de mim, silenciosamente, quando eu estava de pé junto à sepultura de P’titJean.
Assenti com a cabeça. Tinha a garganta irritada como se tivesse estado a gritar.
- A verdade é que ele não fala com ninguém – disse Flynn.
- Quase só se exprime por gestos. Acho que não o ouvi falar mais do que uma dúzia de vezes desde que cá estou e mesmo nesses casos habitualmente não passa de um sim ou não.
Vi uma flor vermelha a flutuar na água mesmo ao lado do trilho. Observei-a, sentindo-me nauseada.
- Então ele fala contigo – disse eu
- Às vezes.
Sentia a presença dele ao meu lado. Estava perturbado, queria consolar-me e por momentos tudo o que desejei foi aceitar. Sabia que podia virar-me para ele – era suficientemente alto para poder pousar a minha cabeça no seu ombro – e cheiraria a ozone e a mar, e à lã grosseira da camisola. Por baixo da camisola, sabia que a sua pele era quente.
- Mado, lamento…
Olhei em frente sem o fitar, com uma expressão vazia, detestando a sua piedade e detestando a minha própria fraqueza.
- Maldito velho. Continua com os jogos dele. – Inspirei o ar, devagar e demoradamente. – Nada muda.
Flynn olhou para mim apreensivo.
- Sentes-te bem?
- Sinto.


A PRAIA ROUBADA
Joanne Harris
2002

21 junho 2005

Na vastidão do mundo


Voltou a fechar os olhos. Os odores do jardim invadiram-no, nítidos e bem desenhados, semelhantes às faixas coloridas de um arco-íris.

E o odor exacto, aquele que o arrebatava, estava bem próximo. Grenouille ardia de volúpia e sentia-se gelado de terror. O sangue subiu-lhe ao rosto como se fosse um miúdo endiabrado apanhado em falta, após o que lhe desceu até meio do corpo e voltou a subir, desceu mais uma vez e ele nada podia fazer. O ataque deste perfume fora demasiado brusco. O espaço de um instante, de um suspiro que lhe pareceu uma eternidade. Teve a sensação de que o tempo se desdobrava ou desaparecia radicalmente, pois deixou de saber se agora era agora, se aqui era aqui, ou se pelo contrário o aqui e o agora era outrora noutro lugar.

Na realidade, o perfume que pairava no ar, proveniente deste jardim, era o perfume da jovem ruiva que ele assassinara nessa altura.

O facto de ter reencontrado este perfume na vastidão do mundo, levou-o a derramar lágrimas de felicidade… e que tal pudesse ser imaginário enchia-o de um terror mortal.


O PERFUME
Patrick Süskind

1985

20 junho 2005

Muda de vida


Muda de vida se tu não vives satisfeito
Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar
Muda de vida, não deves viver contrafeito
Muda de vida, se há vida em ti a latejar

Ver-te sorrir eu nunca te vi
E a cantar, eu nunca te ouvi
Será de ti ou pensas que tens...que ser assim?...

Muda de vida se tu não vives satisfeito
Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar
Muda de vida, não deves viver contrafeito
Muda de vida, se há vida em ti a latejar

Ver-te sorrir eu nunca te vi
E a cantar, eu nunca te ouvi
Será de ti ou pensas que tens... que ser assim?...

Olha que a vida não, não é nem deve ser
Como um castigo que tu terás que viver
Olha que a vida não, não é nem deve ser
Como um castigo que tu terás que viver

Muda de vida se tu não vives satisfeito
Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar
Muda de vida, não deves viver contrafeito
Muda de vida, se há vida em ti a latejar


António Variações

15 junho 2005

Até sempre, camarada!


Podia ou não concordar-se com as ideias defendidas com o ardor de quem sempre acreditou nas causas pelas quais empenhadamente combateu.

Podia ou não seguir-se os ideais progressistas de quem até ao fim, sempre acreditou numa democracia feita pelo povo e para o povo.

Figura incontornável da nossa história contemporânea, como já alguém lhe chamou, nele eu admirava a coerência e a capacidade que teve em abdicar da sua vida ao dedicá-la à defesa dos mais fracos, em nome de um ideal que defendeu como lema e fio condutor da sua carreira política.

Até sempre camarada!

14 junho 2005

Elegia


Às vezes era bom que tu viesses.
Falavas de tudo com modos naturais:
em ti havia
a harmonia dos frutos
e dos animais.

Maio trouxe cravos como outrora,
cravos morenos, como tu dizias,
mas cada hora
passa e não se demora
nas tristezas das nossas alegrias.

Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude,
tu quebraste o ritmo e o ardor,
ao partires um a um
os ramos todos da tua juventude.

Não estamos sós:
Setembro traz ainda
um fruto em cada mão.
Mas os homens, as aves e os ventos
já não bebem em ti a direcção.


OS AMANTES SEM DINHEIRO
Eugénio de Andrade
1950


Há palavras que são eternas, porque o poeta assim as torna quando ficam escritas na alma de quem as leu.
Até sempre!

08 junho 2005

Quem diz o contrário é tolo


Aldeia da Meia-Praia
Ali mesmo ao pé de Lagos
Vou fazer-te uma cantiga
Da melhor que sei e faço

De Monte-Gordo vieram
Alguns por seu próprio pé
Um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha a ré

Houve até quem estendesse
A mão a mãe caridade
Para comprar um bilhete
De paragem para a cidade
Oh mar que tanto forcejas

Pescador de peixe ingrato
Trabalhaste noite e dia

Para ganhares um pataco
Quando os teus olhos tropeçam

No voo duma gaivota
Em vez de peixe vê peças
De ouro caindo na lota

Quem aqui vier morar
Não traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana

Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te mudo
Chupam-te até ao tutano
Chupam-te o couro cab'ludo
Quem dera que a gente tenha


De Agostinho a valentia
Para alimentar a sanha
De esganar a burguesia
Quem aqui vier morar

Não traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana

Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo


Os Índios da Meia-Praia
Zeca Afonso

07 junho 2005

Poema para Galileo


Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,

aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria
Eu sei... Eu sei...
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade,
Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.
Eu queria agradecer-te, Galileo,

a inteligência as coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar -- que disparate, Galileo!-- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação --que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.


Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturase poisaram, como aves aturdidas -- parece que estou a vê-las --
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.

E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.

Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.


ANTÓNIO GEDEÃO

06 junho 2005

Um diário para a eternidade


Querida Kitty,

“Pequeno feixe de contradições.” Foi assim que terminei minha última carta e é assim que desejo principiar esta. “Um pequeno feixe de contradições.” Pode me dizer exactamente o que é isto/Que quer dizer contradição? Como acontece com tantas outras palavras, pode significar duas coisas: contradição de fora e contradição de dentro.

A primeira é a costumeira “não cede facilmente, sempre sabe mais, tem sempre a última palavra”, enfim, todas as qualidades desagradáveis de que me acusam. Da segunda, ninguém sabe, o segredo é meu.

Já disse a você, certa vez, que possuo dupla personalidade. Em uma delas encontra-se minha alegria exuberante, que faz graça de tudo, meu entusiasmo e principalmente a maneira como levo tudo na brincadeira. Talvez por isso não me ofenda um flirt, um beijo, um abraço, uma anedota suja. Esta está quase sempre à espreita e empurra o outro, que é muito melhor, mais profundo e mais puro. Você precisa compreender que ninguém conhece o lado melhor de Anne, e é por isso que a maioria das pessoas me acha insuportável. Se durante uma tarde faço uma porção de palhaçadas, todos se fartam de mim por um mês. Realmente, é como filme de amor para pessoas de mentalidade séria: simples distracção que diverte, sem chegar a ser boa. Envergonho-me de contar isso a você, mas como é verdade, vou falar. O meu lado superficial e frívolo está sempre mais alerta que o lado profundo, e por isso há de sair sempre vencedor. Você nem imagina quantas vezes tentei empurrar para longe essa Anne. Tentei mutilá-la, escondê-la, porque, afinal de contas, ela é apenas metade do total que se chama Anne; mas não adianta, e eu sei, também, por que não adianta.

Tenho muito medo de que as pessoas que me conhecem superficialmente venham a descobrir que possuo um outro lado, melhor, mais bem-cuidado. Receio que riam de mim, que me achem ridícula e sentimental, que não me levem a sério. Estou acostumada a não ser levada a sério, mas é só a Anne despreocupada que se acostumou a isso e o suporta. A Anne mais profunda é sensível demais para tal. Se realmente obrigo a Anne boa a ir para o centro do palco, nem que seja por quinze minutos, ela se encolhe toda e acaba cedendo o lugar à Anne número 1, e antes que perceba o que se passa, vejo que desapareceu.

A boa Anne, portanto, não aparece quando tem gente, até hoje nunca se mostrou, nem uma só vez, mas é a que predomina quase sempre quando estamos a sós. Sei exatamente como desejaria ser, como sou, aliás... lá no íntimo. Infelizmente sou assim só para mim mesma. E estou certa de que é por isso mesmo que eu digo que intimamente tenho um gênio bom e que os outros pensam que exteriormente é que tenho gênio bom. No íntimo sou guiada pela Anne pura , mas exteriormente não passo de uma cabritinha travessa, à solta.

Como já disse, nunca expresso meus sentimentos verdadeiros sobre coisa alguma, e foi assim que adquiri a fama de namoradeira, sabe-tudo e leitora de histórias de amor. A Anne jovial dá risada, uma resposta atrevida, sacode os ombros com indiferença, comporta-se como se não ligasse, mas as reações da Anne silenciosa são exatamente o oposto. Para ser sincera, devo admitir que isso me magoa, que tento mudar por todos os meios, mas que estou sempre em luta contra um inimigo muito mais poderoso.

Dentro de mim soluça sempre a mesma voz: “Pronto, nisto é que você se tornou! Sem caridade, ares superiores, atrevida. Ninguém gosta de você, e isso por você não atender aos conselhos da sua metade melhor”.


Bem queria atender, mas não adianta; se fico sossegada e séria, todos pensam que estou tramando alguma e, então, tenho que sair da situação inventando nova brincadeira; isso sem falar na minha própria família, que certamente pensaria que estou doente e me faria engolir comprimidos para dor de cabeça, para os nervos, me apalparia o pescoço e a cabeça para ver se tenho febre, me perguntaria se ando com prisão de ventre e, não achando nada, acabaria me criticando por meu mau humor. Não aguento esses cuidados: se me fiscalizam fico malcriada, depois infeliz e, finalmente, viro o meu coração do avesso para que o lado mau fique de fora e o bom para dentro, e continuo tentando encontrar a maneira de ser como desejo ser, como poderia ser, se... se não houvesse mais ninguém vivo neste mundo...

Anne.

~ Epílogo ~
No dia 4 de Agosto de 1944 a Polícia de Segurança Alemã, acompanhada por alguns holandeses nazis, fez uma rusga ao escritório geral, obrigando Kraler a revelar a entrada para o Anexo Secreto. Todos os seus ocupantes, foram presos. No dia 3 de setembro, os prisioneiros judeus, após um período em Westerbork (o principal campo de concentração alemão na Holanda), foram enviados, amontoados em vagões de gado, para Auschwitz, o mais famoso centro de extermínio, na Polônia ocupada. As duas irmãs, foram enviadas para Bergen-Belsen, na Alemanha, dois meses após a morte da mãe. Ali Anne mostrou as mesmas qualidades de coragem e paciência na adversidade que a haviam caracterizado em Auschwitz. Em Fevereiro de 1945, as duas irmãs contraíram tifo. Um dia, Margot, deitada num beliche ao lado da irmã, tentou levantar-se, mas, enfraquecida, caiu ao chão. No seu estado de doença e fraqueza, o choque foi mortal. A morte da irmã fez a Anne o que nada até então conseguira fazer: quebrar o seu espírito. Alguns dias depois, no princípio de Março, Anne morreu.

O DIÁRIO DE ANNE FRANK
1947


03 junho 2005

As palavras são de graça

Chamo-me Eva, que quer dizer vida, segundo um livro que a minha mãe consultou para escolher o meu nome. Nasci no quarto dos fundos de uma casa sombria e cresci entre móveis antigos, livros em latim e múmias humanas, mas isso não conseguiu tornar-me melancólica, porque vim ao mundo com um sopro de selva na memória. O meu pai, um índio de olhos amarelos, oriundo do lugar onde se juntavam cem rios, cheirava a bosque e nunca olhava o céu de frente, porque tinha sido criando debaixo da copa das árvores e a luz parecia-lhe indecente. Consuelo, minha mãe, passou a infância numa região encantada, onde durante séculos os aventureiros tem procurado a cidade do ouro puro que os conquistadores viram quando espreitavam os abismos da sua própria ambição. Ficou marcada pela paisagem e, de certa maneira, incutiu-me essa marca.
Não tenho dentes de elefante nem escamas de serpente, pelo menos nenhuma que se veja. De certa forma, as estranhas circunstâncias da minha concepção tiveram consequências bem mais benéficas: deram-me uma saúde inalterável e essa rebeldia que demorou um pouco a manifestar-se mas que me salvou a vida de humilhações para a qual estava, sem dúvida, destinada.
Herdei do meu pai o sangue forte, porque aquele índio devia ser muito forte para resistir tantos dias ao veneno da serpente e em plena agonia dar prazer a uma mulher. Tudo o resto devo-o à minha mãe.
A minha mãe era uma criatura silenciosa, capaz de se dissimular entre os móveis, de se perder no desenho do tapete, de não fazer o menor alvoroço, como se não existisse; contudo na intimidade do quarto que compartilhávamos, transformava-se. Começava a falar do passado ou a contar as suas histórias e o quarto enchia-se de luz, desapareciam as paredes para dar lugar a paisagens incríveis, palácios a abarrotar de coisas nunca vistas, países longínquos inventados por ela ou subtraídos da biblioteca do patrão; colocava a meus pés todos os tesouros do Oriente, a lua e tudo o que havia para lá dela, reduzia-me ao tamanho de uma formiga para sentir o universo, desde o mais ínfimo, colocava-me asas para o ver desde o firmamento, dava-me uma cauda de peixe para conhecer o fundo do mar.
As palavras são de graça, dizia, e se apropriava delas, todas eram suas. Semeou na minha cabeça a ideia de que a realidade não e apenas o que se vê à superfície, tem também uma dimensão mágica e se alguém o deseja veemente é legítimo que a exagere e lhe dê cor para que a passagem por esta vida não seja tão aborrecida.


EVA LUNA
Isabel Allende
1987

01 junho 2005

O que merecem por direito


O Dia Mundial da Criança comemora-se hoje, numa altura em que em Portugal continuam a aumentar os casos conhecidos de maus-tratos e abusos sexuais de menores e a obesidade infantil é já considerada uma epidemia.

A nível mundial, Portugal é o sexto país com maior percentagem de mortes de crianças por maus-tratos, segundo a Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens, baseando-se num relatório da UNICEF de 2004.

Várias organizações insistem no cumprimento integral dos direitos das crianças, consignados numa Convenção das Nações Unidas a que Portugal aderiu, e na valoração das relações afectivas. Desde o início do ano, a Polícia Judiciária já deteve mais de 30 suspeitos de prática de abusos sexuais a menores, nomeadamente do sexo feminino.

Em Maio, o presidente da Comissão para a Adopção defendeu a criação de uma entidade coordenadora do sistema de protecção da criança, que tenha um papel mais eficaz na prevenção da violência. Luís Villas-Boas acha que, em Portugal, não existe um verdadeiro sistema de protecção da criança, mas sim uma panóplia de departamentos do Estado, instituições particulares e várias organizações, que funcionam em total descoordenação. Recordando que o número real de crianças vítimas de maus-tratos é muito superior àquele que é conhecido publicamente, Villas-Boas defende a criação de uma comissão ou subcomissão parlamentar para os assuntos da criança.

Como tem sido hábito há vários anos, escolas, empresas e autarquias de todo o país vão assinalar a efeméride com visitas a museus, espectáculos, exposições, jogos e outros divertimentos para que, pelo menos por um dia, muitas crianças possam receber aquilo que merecem por direito.

p'ela Agência Lusa
1 Junho 2005