31 maio 2005

Os ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espectáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


Sentimento do Mundo
Carlos Drummond de Andrade

27 maio 2005

Bom conselho


Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio vento na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade


Chico Buarque
1972

25 maio 2005

Poesia Matemática

Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides,
boca trapezóide,
corpo retangular,
seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.

"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa.
"E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.

E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.

Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.

Convidaram para padrinhoso
Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.

E foram felizes
até aquele dia em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
freqüentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.

Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio
passou a ser moralidade
como aliás em qualquer
sociedade


Tempo e Contratempo
Millôr Fernandes
1954

19 maio 2005

Tristeza

Tristeza, por favor vá embora
Minha alma que chora
Está vendo o meu fim

Fez do meu coração a sua moradia
Já é demais o meu penar
Quero voltar àquela vida de alegria
Quero de novo cantar

La la la laLa la la la la la
Quero voltar àquela vida de alegria
Quero de novo cantar

18 maio 2005

No Bairro do amor


No bairro do amor a vida é um carrossel
Onde há sempre lugar para mais alguém
O bairro do amor foi feito a lápis de cor
Por gente que sofreu por não ter ninguém

No bairro do amor o tempo morre devagar
Num cachimbo a rodar de mão em mão
No bairro do amor há quem pergunte a sorrir:
Será que ainda cá estamos no fim do Verão?

Eh, pá, deixa-me abrir contigo
Desabafar contigo
Falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
Descontrair-me um pouco
Eu sei que tu compreendes bem

No bairro do amor a vida corre sempre igual
De café em café, de bar em bar
No bairro do amor o Sol parece maior
E há ondas de ternura em cada olhar

O bairro do amor é uma zona marginal
Onde não há hotéis nem hospitais
No bairro do amor cada um tem que tratar
Das suas nódoas negras sentimentais

Eh, pá, deixa-me abrir contigo
Desabafar contigo
Falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
Descontrair-me um pouco
Eu sei que tu compreendes bem


Album O BAIRRO DO AMOR
Jorge Palma
1990

17 maio 2005

À margem da vida

Ao longo daqueles dias, a verdade surgira-lhe com toda a sua intolerável crueza: fora por cobardia que se alimentara de esperanças oca, para ficar com ele, não era capaz de viver sem ele. Não tinha sequer a desculpa de um amor generoso, o sofrimento e o rancor haviam morto já tudo o que fora amor. Chegara ela alguma vez a amá-lo?

Estugou o passo. Houvera Pierre. Se ele lhe tivesse dado a sua vida, talvez nunca tivessem chegado a existir nela tantas divisões e mentiras. Talvez também para ela o mundo tivesse sido cheio e ela tivesse conhecido a paz do coração. Mas agora acabara-se; apressava-se para ir ter com ele sem achar dentro de si mais do que um desejo desesperado de lhe fazer mal.

Subiu as escadas, acendeu as luzes. Antes de sair, deixara a mesa posta e a ceia estava realmente com um belo aspecto. Também ela estava com um belo aspecto, com a sua saia escocesa e a maquilhagem bem cuidada. Se se visse aquele cenário num espelho, poderia pensar-se que se tratava de um velho sonho realizado. Quando tinha vinte anos, no seu quartinho triste, preparava para Pierre fatias de carne de porco, garrafas de vinho tinto, e imaginava por brincadeira que lhe estava a oferecer uma ceia requintada, com foie gras e Borgonha velho. Agora o foie gras estava na mesa, ao lado das fatias barradas com caviar e havia xerez e vodka nas garrafas; Elisabeth tinha dinheiro, conhecimentos, um começo de fama. E todavia continuava a sentir-se à margem da vida; esta ceia não passava de uma imitação de ceia, numa imitação de estúdio elegante. E ela não passava de uma paródia viva da mulher que pretendia ser.

Partiu um petit four entre os dedos. O jogo era divertido outrora, era uma antecipação de um futuro brilhante; ela já não tinha futuro; sabia que em parte nenhuma, sabia que nunca atingiria um modelo autêntico do qual o seu presente era uma cópia. Nunca conheceria mais nada para lá destas falsas aparências. Era um feitiço que fora lançado: ela transformava tudo aquilo em que tocava em coisas de papelão.


A CONVIDADA
Simone de Beauvoir

16 maio 2005

Escolhe os teus inimigos

Diz um poeta: “o guerreiro da luz escolhe os seus inimigos.”
O guerreiro sabe do que é capaz. Não precisa sair pelo mundo contando suas qualidades e virtudes. Entretanto - como no velho Oeste - a todo momento aparece alguém querendo provar que é melhor que ele.
O guerreiro sabe que não existe "melhor" ou "pior": cada um tem os dons necessários para o seu caminho individual.
Mas certas pessoas insistem. Provocam, ofendem, fazem de tudo para irritá-lo. Neste momento, o coração do guerreiro diz: "não aceite as ofensas, elas não vão aumentar a sua habilidade. Você vai se cansar a toa".
Um guerreiro da luz não perde seu tempo escutando provocações; ele tem um destino a ser cumprido.

MANUAL DO GUERREIRO DA LUZ
Paulo Coelho

13 maio 2005

A Fita Vermelha


Se vos conto este desgosto tão grande, não é para vos entristecer. Mas para vos ajudar a compreender, como só então eu pude compreender, o valor da vida. O amor da vida. O valor de um gesto de amor. O seu «preço», que dinheiro algum consegue comprar.

Eu ensinava numa escola velha, escura. Cheia do barulho da rua, dos «eléctricos» que passavam pelas calhas metálicas. Dos carros que continuamente subiam e desciam a calçada. Até das carroças com os seus pacientes cavalos.

A escola era muito triste. Feia. Mas eu entrava nela, ou digo antas, em cada aula, e todo o sol estava lá dentro. Porque via aqueles rostos, trinta meninas, olhando para mim, esperando que as ensinasse.

O Quê? Português, francês. Hoje sei, acima de Tudo, o amor da vida.

Com toda a minha inexperiência. Com todos os meus erros. Porque um professor tem de aprender todos os dias. Tanto, quase tanto ou até muito mais que os alunos.

Mas, desde o primeiro dia, compreendi que teria nas alunas a maior ajuda. O sol, a claridade que faltava àquela escola de paredes tristes. A música estranha e bela que ia contrastar com os ruídos dos «eléctricos», dos automóveis da calçada onde ficava a escola. Até com o bater das patas dos cavalos que passavam de vez cm quando.

Porque, mais que português e francês, havia uma bela matéria a ensinar e a aprender. Foi nessa altura que comecei mesmo a aprender essa tal matéria ou disciplina – ou antes, a ter a consciência de que a aprendia.

Eu convivia com jovens (seis turmas de trinta alunas são perto de duzentas) que no princípio de Outubro me eram desconhecidas. Cada uma delas representava a folha de um longo livro que no princípio de Outubro me era desconhecido. Todas eram folhas de um longo livro por mim começado a conhecer. Não há ser humano que seja desconhecido de outro ser humano. Só é precisa a leitura.

Eu tinha agora ali perto de duzentas amigas. Todas aquelas meninas confiando em mim, esperando que as ensinasse; sorrindo, quando eu entrava, assim me ensinavam quanto lhes devia.

Numa turma uma aluna faltava há dias. Era a Aurora. Morena, de grandes olhos cheios de doçura. Talvez triste.

A Aurora estava doente. Num hospital da cidade, numa enfermaria. Num imenso hospital.

Olhei o retratinho dela na caderneta.

Retratinho de «passe», num sorriso de nevoeiro de uma modesta fotografia. Tão cheia de doçura a Aurora! Doente, do hospital tinha-me mandado saudades.

– Vou vê-la no próximo domingo – anunciei às companheiras.

E tencionava ir vê-la mesmo no próximo domingo.

Mas o próximo domingo foi cheio de sol. Sol do próprio astro, quente, luminoso. Igual e diferente, ao mesmo tempo, do sol-sorriso das meninas.

E eu, a professora, ainda jovem, que gostava do sol, fui passear. Ver mar? Campos verdes? Flores? Já nem me lembro. E da Aurora me lembraria se a tivesse ido visitar.

Começava a Primavera.

Adiei a visita naquele próximo domingo, para outro dia, para outro próximo domingo.

Hoje sei que o amor dos outros se não adia.

Aurora esperou-me toda a tarde de domingo, na sua cama branca, de ferro. Tinha posto uma fita vermelha a segurar os cabelos escuros. Esperava-me, esperava a minha visita, cuja promessa as companheiras lhe haviam transmitido.

Veio a família: mãe, pai, irmãos, amigos, as colegas.
– Estou à espera da professora...

No dia seguinte a doença foi mais poderosa que a sua juventude, a sua doçura, a sua esperança.
A cabeça escura, sem a fita vermelha, adormeceu-lhe profundamente na almofada, talvez incómoda, do hospital.

Sabemos todos já, amigos, que há vida e morte. Também isso temos de aprender.

Não fiquem tristes por isso. Vejam como as flores nascem quase transparentes da terra, como as podemos olhar à luz do Sol, e morrem, para de novo nascerem.

Lembrem-se como de um ovo de um pássaro podem sair asas que voem tão alto em dias de Primavera. Morrem, também, e todas as primaveras nascem de novo. E, sobretudo, lembrem-se do coração de cada um de nós, desta força imensa.

E não adiem os vossos gestos. Procurar alguém que sofra, que precise de nós, nem sequer é um gesto generoso, deve ser um gesto natural que se não adia.

Às vezes até precisamos uns dos outros para dizermos que estamos felizes, contentes. Só para isso. Mesmo felizes precisamos dos outros.

Aurora ensinou-me para sempre esta verdade.

As lágrimas que por ela chorei já não lhe deram aquela visita do próximo domingo.

Nem a mim a alegria de a encontrar sorrindo, cheia de doçura, com uma fita vermelha a prender os cabelos escuros. Vermelha de sangue, como a vida. O Sol. Flores vermelhas.

Aurora era o seu nome. E a sua vida uma manhã apenas que, na minha distracção ou egoísmo, não tive tempo de olhar. Uma manhã com uma fita vermelha. Que lágrima nenhuma pode reflectir.


O SOL E O MENINO DOS PÉS FRIOS
Matilde Rosa Araújo

12 maio 2005

Amigo é a solidão derrotada


Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,

É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,

Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,

«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!


NO REINO DA DINAMARCA
Alexandre O’Neill

11 maio 2005

Um homem não chora


Maria Cantigas chama a isto «ser ele muito senhor do seu nariz», o que o arrenegou muitas vezes quando mais criança, pois deu-se em traduzir o dito da mãe como sinal de que o nariz lhe nascera maior que a conta.
Foi desgosto sofrido a fogo lento. Sentiu-se caraça de Carnaval, daquelas de narigueta avermelhada e torta, vendo em tal defeito a razão de a mãe se perder em mimos mais escolhidos com a irmã, a Ana Maria. Viveu um ciúme pegado. Até refilava por não andarem com ele ao colo, o que só provocava risota e lhe acrescentava o despeito.
Passou tempos esquecidos a mirar-se ao espelho, num confronto minucioso com todas as caras conhecidas, e jurava a pés juntos, que não era nenhuma nariganga.
O diabo da mulher – refilava ele – nem parece que lhe pertenço; mais valia torcer-me o pescoço quando nasci.
O pai via-o amuado pelos cantos, perguntava às mulheres de casa:
- O que diabo tem o rapaz?!
E como ninguém lhe explicasse aquela tristeza. Trouxe-o uma tarde para junto do Tunante, o cão guardador do curral das vacas.
Ali se puseram à conversa.
Foi a primeira conversa a sério que Silvestre Cuco teve com o filho. Este nunca mais esqueceu tal dia, em que fez uma das descobertas mais surpreendentes da sua vida.
Falaram de homem para homem. Sim, senhor, de homem para homem, e o Constantino sabe bem o que lhe custou essa conquista.
Quando se abriu com o pai para lhe confessar que a mãe não gostava dele por causa do nariz, apareceu-lhe de repente nos olhos uma grande vontade de chorar. Embargou-se-lhe a voz, as palavras começaram a sair todas cortadas, e vai então o pai disse-lhe assim:
- Um homem nunca chora, mesmo que veja as tripas de outro na mão…
Apressado, o Constantino deitou a ponto dos dedos a umas lágrimas que queriam rebentar, e ali esmo as esmagou, segurando as outras todas que já vinham numa carreirinha para fazerem pranto. Baixou a cabeça por instantes, erguendo-a depois com um sorriso. Encararam-se, o pai incitou-o com um olhar que ele conhecia, e o Constantino percebeu que ganhara nesse dia o seu melhor camarada.
- Assim mesmo… Um homem não chora…
- Já sou homem?
- És. És um homem valente. Queres ser um homem valente?
- Quero. Quero, sim senhor, meu pai.
- Então nunca mais julgues que a tua mãe gosta mais da Ana Maria do que de ti… A tua irmã é pequenita…
E eu sou um homem, não é?
Pois, tu és um homem…Um homem pequeno…
Mas ela metia-se com o meu nariz, e o meu nariz não é grande…
- Ela só queria dizer que tu és teimoso.
Riram ambos com gosto. E tanto, como dois bons camaradas, que a Ti Elvira veio à porta de casa para descobrir o que se passava. Ficou na mesma; mas bastou-lhe à curiosidade ver o filho e o neto tão deslumbrados um com o outro.


CONSTANTINO GUARDADOR DE VACAS E DE SONHOS
Alves Redol
1962

10 maio 2005

Adeus


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
E o que nos ficou não chega
Para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
Gastámos as mãos à força de as apertarmos,
Gastámos o relógio e as pedras das esquinas
Em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
Era como se todas as coisas fossem minhas:
Quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
Porque ao teu lado
Todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
Era no tempo em que os meus olhos
Eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
Uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
Já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
Tenho a certeza
De que todas as coisas estremeciam
Só de murmurar o teu nome
No silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.


ANTOLOGIA POÉTICA
Eugénio de Andrade
1940-1980

09 maio 2005

É assim que aprendemos


– Padre – dissera Chartrand – posso fazer-lhe uma pergunta estranha?
– Só se eu puder dar-lhe uma resposta estranha – respondera o camerlengo, com um sorriso.
Chartrand rira-se.
– Tenho feito esta pergunta a todos os padres que conheço, e continuo sem compreender.
– O que é que o perturba?
O camerlengo caminhava com passos curtos e rápidos, agitado a sotaina à sua frente e a cada passada. Os sapatos pretos, de sola de crepe, condiziam com o homem, pensara Chartrand, eram como que o reflexo da sua essência…modernos mas simples, a mostrar sinais de uso.
Chartrand inspirara fundo.
– Não entendo essa coisa de Omnipotência-benevolência.
O camerlengo voltara a sorrir.
– Andou a ler as Escrituras.
– A tentar.
– Está confuso porque a Bíblia descreve Deus como uma divindade omnipotente e benévola.
– Exacto. Omnipotente-benévolo significa apenas que Deus é todo-poderoso e nos ama.
– Compreendo o conceito. É que … parece haver uma contradição.
– Sim. A contradição é a dor. A forme, a guerra, a doença.
– Exactamente! – Chartrand sabia que o camerlengo havia de compreender. – Acontecem coisas terríveis neste mundo. A tragédia humana parece prova de que Deus não pode ser todo-poderoso e amar-nos. Se Deus nos amasse e tivesse o poder de alterar a nossa situação, impediria a nossa dor, não é verdade?
O camerlengo franzira a testa.
– Será?
Chartrand sentira-se pouco à vontade. Teria passado os limites? Seria aquela uma das tais perguntas religiosas que pura e simplesmente não se faz?
– Bem… se Deusa nos amasse, e tivesse poder para nos ajudar, teria de fazê-lo. Por isso parece que ou é Todo-Poderoso e indiferente, ou nos ama mas não pode ajudar-nos.
– Tem filhos, tenente?
Chartrand corara.
– Não, signore.
– Imagine que tinha um filho de oito anos… Amá-lo-ia?
– Com certeza.
– Deixá-lo-ia andar de skate?
Chartrand hesitara. O camerlengo parecia sempre estranhamente «sintonizado» para padre.
– Sim, acho que sim – acabara por dizer. – Sim, deixá-lo-ia andar de skate, mas dir-lhe-ia para ter cuidado.
– Portanto, como pai desse rapaz, dar-lhe-ia alguns conselhos básicos e deixá-lo-ia cometer os seus próprios erros?
– Não ia pôr-me a correr atrás dele e apaparicá-lo, se é a isso que se refere.
– Mas… e se ele caísse e esfolasse um joelho?
– Aprenderia a ter mais cuidado.
O camerlengo sorrira.
– Portanto, embora tivesse o poder de interferir e evitar a dor do seu filho, optaria por mostrar-lhe o seu amor deixando-o aprender à própria custa?
– Claro. A dor faz parte do crescimento. É assim que aprendemos.
O camerlengo assentira.
– Exactamente.


ANJOS E DEMÓNIOS
Dan Brown
2000

06 maio 2005

Moços que nunca foram meninos


O telhal está silencioso e deserto, e o vento zune no caniço dos esteiros, negros como breu. No céu, nem uma estrela. As luzes mortiças dos saveiros, ao longe, adensam a noite.

Mas o Gineto não tem medo, Já por duas vezes que atravessou o esteiro, com lodo pelos joelhos, para ir roubar carvão da Fábrica Grande. No largo da vila já há armações para a feira – e ele quer voltar a ver a Rosete na barraca de tiro; quer comprar-lhe beijos com dinheiro que no telhal não chegou a juntar. Por isso, atravessa de novo o esteiro, agora cheiro de água; depois rasteja e corre rapidamente para junto do carvão, com que vai enchendo a saca, precipitadamente, atento a ruídos e focos de luz. As máquinas, porém, abafam os passos dos guardas, confundidos com as trevas. Quando esboça a fuga, é tarde de mais, perante homens lestos e potentes como o Rex, o canzarrão da Quinta Alta.

Dorme?... Não congemina fugas e pensa que os companheiros o virão salvar, como naquela noite de temporal em que o Boa Sorte naufragou.

Mas os amigos não vêm, e a mãe, com as suas lágrimas não consegue anular o depoimento dos guardas, dos caseiros e do Cabo do Mar, que tem uma cicatriz indelével no braço, feita pelo canivete do Gineto…

Rolam dias iguais a todos os dias; o Outono chega, cavalgando o vento. E Gineto mantém a mesma fé de quando entrou na prisão.

Uma voz canta, mesmo por baixo da janela, uma canção que ele ouviu, certa tarde, no alto do mirante. Então grita:

- Gaitinhas! Tou aqui, Gaitinhas!

Mas a voz afasta-se. Gatinhas-cantor vai com Sagui correr os caminhos do mundo, à procura do pai. E quando o encontrar, virá então dar liberdade ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos telhais – moços que parecem homens e nunca foram meninos.



ESTEIROS

Soeiro Pereira Gomes
1941

05 maio 2005

Para além da tua morte


Levas contigo os sonhos que tive quando te inventei? Sempre quis que fosses a minha palavra para além do que dizia, o eco da minha voz ao longe, o meu não constante aos donos do mundo. Desejei-te sereno e revoltado, criativo mas lúcido corajoso e terno. Queria-te independente e próximo, criança e homem, alguém capaz de levar por diante as minhas ideias. Por vezes imaginei-te um rasto de mim, um pedaço do meu corpo a viver ao longe, um novo ser poucas vezes diferente do que ambicionei. Noutras ocasiões distante, mal te distinguia ao longe, ficava então só e à espera, o tempo havia de te fazer regressar para junto de mim.

Olho agora a noticia da tua morte, o recorte de um jornal diário onde alguém (o teu pai?) mandou escrever palavras sem sentido, a custo distingo uma cruz sobre o nome Diogo que escolhi com alegria à vinte e dois anos, apenas sei que o frio me invade a cada dia que passa e o terror de ter perdido para sempre cresce dentro de mim.

Chegou em coma profundo, estamos a fazer o possível…

Pensava sempre em ti. No dia em que nos despedimos à porta da escola. Na história do menino, do coelho e do mocho que lhe ensinou o caminho para o mar (lembrei-me, Diogo, sentado no hospital à espera dos médicos, da primeira vez que me corrigiste, quando eu preguiçosa, procurava chegar depressa ao fim, tinhas tu três anos acabados de fazer e querias ouvir tudo). No Jardim Zoológico, onde passeámos tantas vezes, só eu adivinhava o teu gosto pelas aves e o teu horror pelos macacos. Nos nossos passeios no pinhal, tu a correr à procura de flores, e eu sentada num tronco de árvore a olhar para ti, finalmente o medico

Morte cerebral, infelizmente…

Foi assim que o médico me comunicou o teu fim. Era preciso esperar mais um pouco por razões que não percebi, só então estarias ao pé de mim pela última vez, poderia beijar-te e dizer-te adeus, mas não consegui na altura entender que jamais me vou separar de ti mesmo para além da tua morte…



VAGABUNDOS DE NÓS
Daniel Sampaio
2003


04 maio 2005

Anda ver o mar


Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar


Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz


Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Vira também

Negro bairro Negro
Bairro Negro
Onde não há pão
Não há sossego


Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção

Se até dá gosto cantar

Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti

Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver

Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar


MENINO DO BAIRRO NEGRO
Zeca Afonso

03 maio 2005

Que cor têm o mundo?

«Que cor tem o mundo na tua cabeça?» A frase partira, de certeza, de Jacinta. Não podia ser da Cristina. Esta teria reparos mais concretos. Dela previa-se, por exemplo, coisas assim: «Pela tua rica saúde, não voltes a pôr o jornal em cima do meu chapéu branco», a que poderia acrescentar, amaciando um tudo-nada a voz se os outros tivessem notado a aspereza; «Suja-se todo.» E ele não voltaria a atirar o jornal ao acaso, para não se expor a vê-lo cair sobre o chapéu branco. O chapéu de Maria Cristina. As coisas de Maria Cristina, de que ele fazia parte.

E fora talvez por isso que acontecera Jacinta. Mas nessa rebelião, e não precisamente infidelidade, a que pela primeira vez se ousara (um medir de forças que começava e terminava dentro dele, sem coragem de o desvelar aos olhos de Maria Cristina), só havia lugar para o efémero. Jacinta era um pretexto e, simultaneamente, um acidente que, se ainda durava, se ia talvez durar por muito tempo, isso se devia à sua tibieza nas tentativas de o dar por findo.

Vasco não saberia dizer o que o ligava a Maria Cristina (o hábito? O medo?); sabia, porém, que se tornara por assim dizer irremediável continuarem juntos, para se amarem ou suportarem à sua maneira, para se acusarem, para, num e noutro, concretizarem as suas frustrações. Por isso, nas relações com Jacinta., procurava quase sempre que nelas só coubessem a fugacidade dos sentidos. Queria ver nela apenas a mulher que precisa do prazer. Nesses momentos, as palavras não tinham, astúcia nem memória, ainda que fossem expansões em que aflorava a mentira que veste o desejo e o faz mais autêntico e apetecido.


OS CLADESTINOS
Fernando Namora
1971

01 maio 2005

Um amor eterno



Mãe, gostas de mim?

Olho para o seu sorriso que me interroga e por momentos volto atrás no tempo.

Volto aquela manhã em que tive a certeza que a minha vida ia mudar para sempre, pois acabava de descobrir que em mim crescia uma nova vida.


Relembro os cuidados que tive de ter e as conversas secretas que tivemos as duas antes de ela nascer.

De como me apaixonei por ela assim que a vi pela primeira vez, quando era ainda só um grãozinho minúsculo que crescia dentro de mim.

Quando finalmente nasceu, percebi que entre nós irá existir para sempre um laço que será eterno, porque eterno é o amor que inquestionavelmente lhe dedico.

Gosto muito meu amor, para sempre!

A ti Martinha dedico este post, as palavras que nele escrevi são palavras de gente crescida que provavelmente só mais tarde entenderás, por agora guarda as palavras mágicas que te sussurro ao ouvido quando te vou adormecer.